Borboletas

Os útltimos dois dias foram de formação e debate com responsáveis, diretores e professores de escolas de alguns dos sítios mais inacessíveis desta Guiné-Bissau.
 
Nos primeiros instantes do encontro em Bafatá, os cumprimentos seguiam-se de "Kuma ku faci pa bim?" - Como fizeste para vir?
Os relatos, de nenhum sítio mais distante que 200 km, falavam de horas intermináveis de viagem, alguns de dois dias, de canoas, de caminhos de buracos e lama onde os carros atolaram vezes sem conta, dos kilómetros que fizeram a caminhar, de esperar e trocar de kandonga (espécie de transporte coletivo), dos pontos em que os militares os obrigavam a descer do transporte, seguir a pé uns 100/200 metros e voltar a entrar mais à frente para seguir viagem. Mas chegaram.
 
Numa das minhas primeiras deslocações a uma destas escolas, já na época seca, perguntei, perplexa pelas péssimas condições da "estrada": Como é possível fazer-se este caminho na época das chuvas??. O Mário Na Kala respondeu-me, sem hesitação: Com Deus!!
 
Trabalhou-se muito nestes dois dias. Partilhadas as dificuldades e os constrangimentos (suficientes para paralisar qualquer escola), traçam-se metodologias de trabalho, debatem-se questões comuns, criam-se sinergias e seguimos confiantes no início de mais um ano letivo.
Agora, a par de debruçar-me na parte objetiva do trabalho e de começar a projetar passos concretos a dar, fica em mim, mais uma vez, a admiração profunda por estas pessoas, pelo seu empenho, pela sua força e preserverança.
 
No ínicio do encontro, todos foram convidados a apresentarem-se, referindo, entre outras coisas, a função que desempenhavam na escola.  O Braima riu e disse com firmeza: Eu sou sozinho na escola! Sou o professor, o diretor, o contínuo, o servente...!
Quando visito esta escola, vejo uma sala apinhada de alunos (entre 40 a 50) e um professor que se multiplica para ensinar as 4 classes. E vejo-o estender a mão envergonhada com os documentos da escola, feitos à mão numa folha suja; os registos de assiduidade a lápis para poder apagar no final do ano e voltar a usar no próximo, numa reciclagem forçada já de há alguns anos.
 
Volto a lembrar-me das borboletas, numa descoberta de há pouco mais de um ano:
 
Borboletas! Pois é… há imensas borboletas aqui na Guiné-Bissau. Imensas! Por todo lado!
E há dias demorei-me nelas, nas borboletas. Há tantos bichinhos feios, baratas, aranhas, lagartos, sapos por todo o lado, cobras, morcegos, abrutes, tantos mosquitos e mais e mais insectos… e depois há as borboletas. Lindas! De todas as cores e padrões. Voando contentes!
Parece quase um sopro de Deus, um toque de Beleza sempre presente, transversal a todos os cenários.
 
Foi muito importante parar-me neste meu encontro com as borboletas.
Porque preciso delas, do que elas simbolizam enquanto brilho de cor e alegria leve e constante.
E porque tenho conhecido borboletas-gente por aqui. Pessoas tão bonitas, que não me basta admirá-las, porque me perco no mistério infinito de tentar perceber como podem existir estas pessoas.
Ao longo da minha vida tenho tido a sorte de conhecer verdadeiros tesouros, pessoas mesmo bonitas… e pessoas mesmo bonitas implica beleza maior que qualquer paisagem do mundo, que qualquer monumento, que qualquer obra de arte. Porque é uma beleza sem tamanho e sem lugar, sem cor e ao mesmo tempo com tantas cores e cores inventadas e brilhos inexistentes mas cheios de luz; porque é uma beleza que vem de dentro e que foge pelos olhos de quem a tem, projectando coisas que nunca ninguém saberá explicar.
Ai (suspiro), como agradeço a Deus por estas pessoas!
Mas aqui, não chega contemplar assim as pessoas-borboleta que tenho conhecido. Porque é mesmo um mistério. Como é que alguém que não tem nada ou tem tão pouco, consegue dar tanto e ser tanto… é um verdadeiro mistério. Quase um dogma.
11.Outubro.2011
 
 
Hoje fico com o dogma e o empenho para ser mais e melhor com o tanto que tenho disponível.
Grata pela inspiração.

Viver na Guiné-Bissau

é viver absolutamente feliz e profundamente livre. Porque te entregas. Porque aceitas. E só assim faz sentido.
 
Viver na Guiné-Bissau é emocionares-te vezes sem conta com o acolhimento simples, humilde e genuíno dos que te rodeiam.
É ganhar aversão à palavra "BRANCO" que te é dirigida e sempre te lembra que ainda és demasiado diferente.
Mas o tempo vai passando e "branco" é substituído pelo teu nome pronunciado pelas ruas por pessoas que nem sempre reconheces, mas saúdas com alegria.
Mais tempo passa e já és tu a chamar as pessoas quando as vês ao longe. Ja conheces a terra e a terra conhece-te. Mais tempo ainda e o crioulo dança na tua boca em conversas que manténs orgulhosa.
 
Viver na Guiné-Bissau é aprender mesmo o que não queres, é sentires-te perdida e até desiludida, mas é também uma força gigante e irresistível que te faz ultrapassar todas as dificuldades e obstáculos e seguir maior e mais confiante. Mais plena. Mais inteira. Porque te lembras que este é o teu sonho. Que esta é a vida que queres. Que é bem mais difícil do que pensavas, mas vale a pena! 
E porque os guineenses são inspiração de magia em cada gesto, são exemplo de coragem e dedicação, de luta e preserverança.
 
Viver na Guiné-Bissau é receberes em ti a chuva que cai do céu, é saltares nas poças de água com os amigos que se tornaram família, é deixares os sorrisos molharem os lábios sem medo dos relâmpagos enquanto corres pela rua.
 
Viver na Guiné-Bissau é passar horas a tentar ver estrelas cadentes que teimam em não aparecer e se mostram dias mais tarde quando estás distraída mas precisavas, mais do que nunca, de um brilhozinho no céu.
 
Viver na Guiné-Bissau é passar horas dentro de jipes em estradas esburacadas no meio do mato, é percorrer de canoa os sitios mais bonitos do mundo, é distinguir dezenas de cantos de pássaros, é cansar o braço que acena às pessoas que te cumprimentam no caminho.
 
Viver na Guiné-Bissau é conviver (demasiado!) perto com os bichos e bichinhos. É passar a vida rodeada de poeira ou de lama; uma de cada vez, não as duas ao mesmo tempo, vá.
 
Viver na Guiné-Bissau é aceitar um ritmo de vida diferente, é treinares a tua paciência, é aprenderes a saborear, a desfrutar, a confiar. 
 
 
Há dias em que é preciso parar e contemplar.
Apesar das nuvens escuras no céu, deixemos o nosso olhar pousar nas cores do Arco-Íris.
 






 
 
 
 
 
Guiné-Bissau, terra sabi!

Prometes voltar?

A pergunta é feita pela Isabel ao irmão, no segundo capítulo do livro que me tem ocupado os intervalos deste fim-de-semana: "Uma terra distante".
 
Foi uma prenda que ofereci a quem, como eu, está numa terra distante e partilha comigo pedaços da vida em Bafatá. Nesta reciprocidade espontânea, sou eu agora a lê-lo.
Ainda estou a descobrir a história.
Mas antes precisei parar e digerir este Prometes voltar? dirigido a quem parte para uma terra distante.
 
Prometes voltar?
Não sei responder. Não sei se percebo a pergunta.
 
E fico a pensar até nisto: uma terra distante. Distante de onde? Distante de quem? Distante de quê?
 
Prometes voltar?
Lembro Luanda e os meus meninos. Minha primeira terra distante. Onde tudo começou. Onde me perguntaram, pela primeira vez, olhos firmes nos meus: Prometes voltar?
Depois Moçambique. E agora a Guiné-Bissau.
 
Prometes voltar?
E esta pergunta entoa em mim. Sem resposta. Sem sentido.
Voltar.
Prometes voltar?
 
Voltar onde?
Voltar para casa?
Voltar a Angola?
Voltar a Moçambique?
 
Voltar a um lugar? A uma pessoa? A um instante?
 
Quando eu souber, de verdade, que todos os lugares são um só, nunca precisarei de voltar. Nem de partir.
Por agora fico, aqui, nesta terra distante. 
 
Mas... estarei eu assim tão distante? Às vezes acho que estou perto, muito perto.
Talvez porque nunca se parte por inteiro, nunca se regressa por inteiro. Então como voltar de onde nunca chegamos a partir? E como não voltar aos lugares aonde fomos (somos?) plenitude e Vida?
 
Saio de casa e o meu coração quer voltar. Chego a casa e o meu coração quer voltar.
Quando todos os lugares são terras distantes e quando em todos algo nos faz prometer voltar...
 
Mas, afinal, nada do que conhecemos é distante, porque vive em nós.
Porque os lugares são mais do que a intensidade do pôr-do-sol laranja, mais do que a terra vermelha do chão, do que o asfalto da estrada. Porque os lugares não são as paredes e os móveis, não são as avenidas nem a água do mar.
Os lugares são palcos. E o que fica em nós são as pessoas que o enchem para nos contar uma história, para nos divertir, para nos ensinar, para nos tocar, para nos fazer pensar. O que fica em nós são as interações não ensaiadas nesse palco, são as improvisações constantes, são as surpresas que não estavam no guião, são as cumplicidades e as descobertas.
Os lugares são essas pessoas a quem pometemos voltar. Mas a verdade é que não chegamos nunca a partir. Nunca partimos das pessoas a quem prometemos voltar. Ficamos sempre com elas e elas ficam sempre connosco.
 
Prometes voltar?
Não. Prometo nunca partir.

Erradicação da pobreza

Hoje é o dia da Erradicação da Pobreza.
É só mais um dia?



Num mundo de crise económica, de aumento do preço de combustíveis, de acréscimos constantes em tudo que é imposto, de desemprego, de insatisfação social profunda... a pobreza torna-se mais evidente, mais próxima, mais real.
O que fazer na nova pobreza que está a surgir?
Talvez responder a isto ajude a resolver também a pobreza mais antiga, mais profunda.
E hoje, provavelmente por todo mundo, há eventos apropriados ao dia, há seminários a discutir o assunto, há sessões de sensibilização. Nenhum pobre fica menos pobre. Ou ficará?
Mas é bom que se pare e pense. Nem que se repitam as reflexões, nem que parecem impossíveis conclusões. Quando tudo o que se pode fazer é pouco, que se faça esse pouco. Nunca nada!
Um dia, depois de tanto andarmos em círculos, depois de tanto escrevermos as mesmas teorias, um dia, depois de mais umas quantas manifestações, de outras tantas imagens chocantes nos telejornais, um dia, depois de tantos outros dias, somados todos os esforços, vamos estar mais perto...
Até lá, continuemos, como podemos. E quando isso não for suficiente, continuemos como não podemos.
É... o mundo parece não ter muitas razões para nos animar nos dias que correm.
E logo aqui começa a nossa responsabilidade: vamos nós animar o mundo!
Tudo começa com um pouco de bom humor que ajuda a relativizar; com um sorriso que desenha outros, com uma ação motivada que convida mais braços a erguerem-se. 
Enfrentemos as dificuldades com seriedade, mas de sorriso no rosto. Exijamos mais, mas não só para nós, para o mundo. Mas exijamos!
Falo de contentamento, mas não de nos contentarmos. Isso nunca!
Agora, vamos pensar: atravessar as dificuldade de mau humor, cabisbaixos, sem esperança? Ou atravessá-las em boa companhia, com boas conversas, com gargalhadas soltas e contagiantes? O caminho é o mesmo, mas os passos seguirão mais ritmados.
Até a montanha mais alta tem o seu cume. E se caminharmos juntos, será um passeio!  Há conversas para partilhar, paisagens para contemplar... Tudo isto enquanto seguimos de passos firmes. Mas nada nos obrigada a caminhar sozinhos, sérios e calados encosta acima.
Reclamar pelas pedras maiores que temos que escalar só nos faz gastar energias desnecessárias e lentifica o nosso andar.
Sigamos de sorrisos no rosto,
Quem não quer caminhar feliz, que invente outro caminho, que ponha mãos ao trabalho e fure a montanha num túnel para o outro lado.
Alternativas, sim. Mau humor, não. Só atrasa. Só cansa.
Eu também queria (oh, se queria!) outro caminho. Um mais fácil. Um mais justo. Não estes em que uns vão a pé sem nem terem tomado o pequeno-almoço e outros seguem tranquilos num helicóptero.
Eu também queria... Continuo a acreditar que um dia vai ser possível. Continuo a dormir e a acordar com a responsabilidade de fazer algo concreto, real, com impacto positivo a longo prazo na Vida. Não na minha vida, não na tua vida, não na vida de alguns. Na Vida.
Enquanto não consigo - e sem saber se algum dia conseguirei, se terei a preservança suficiente, a inteligência suficiente, a audácia suficiente, a criatividade suficiente - sigo pela montanha como consigo. Cheia de sorte pelos que caminham comigo e sempre a tentar encher o coração de coisas boas, para que o resto não tenha espaço.
Hoje é o dia da Erradicação da Pobreza.
Um dia não vai ser dia.

Banhos de chuva

Porque é nestes momentos de comunhão plena e profunda que tudo parece ainda mais simples, mais verdadeiro.


Apanhar a chuva. Não porque é inevitável, mas porque se quer. Porque se decidiu aceitar a chuva que cai e caminhar debaixo dela.

Vocês sabem o que é sentir a chuva no corpo e rir só porque sim?

E olhar para o céu e ver a chuva a cair?

É tão bonito! Tão bonito…!

Parar e ver a chuva a cair em nós… e saltar contente! E correr sempre com a chuva a cair…!



E rir mais e mais…
sem perceber, mas a saborear.








A descrição é de há um ano atrás, as imagens de momentos diferentes em que nasceram encontros perfeitos com a água.
E porque está quase a acabar a época da chuvas... Saibamos saborear!



Utopia na palma da mão

O que é possível?
O que é impossível?

Alguém disse uma vez: "Se consegues imaginar, é real."
E é ainda mais real quando sabemos, no mais fundo e verdadeiro de nós, que é possível.
É difícil, oh sim, é muiiito difícil. Mas é possível.
E não é isso que nos faz acordar de manhã e seguir pelos dias feliz e confiante? A mim é.

Mas às vezes não chega pensar, desejar. É preciso agir.
O que fazer quando não sabemos o que fazer?
A minha resposta foi: escrever!
E porquê?
Acima de tudo para não esquecer.

Um dia, pedi à minha mãe: "Por favor, se algum dia vires que me estou a acomodar, lembra-me dos meus ideais, lembra-me de quando eu acreditava que era possível lutar por um mundo melhor. Não deixes que me esqueça. Nunca me permitas que desista."

Atirar-lhe esta responsabilidade deixou-me mais tranquila. Mas a verdade é que tem que começar em mim.

Utopia na palma da mão é isso mesmo. Essa coisa quase imaginária, mas real, se o quisermos. Se formos ainda mais a querer.
Às vezes, quando estou muito atenta, vejo utopias que deixam de o ser, vejo o esboço de caminhos seguros... Mas depois vem a  vida, e distrai-me.
E outros dias, mesmo distraída, sou surpreendida pelas belezas mais inexplicáveis.

Quero aqui pensar sobre essas utopias, esses caminhos. Quero aqui partilhar os pequenos milagres do dia-a-dia que são ponte para novos sonhos, que não inspiração para novas lutas.

Se não conseguir mudar nada, que nunca seja porque deixei de acreditar, que nunca seja porque deixei de tentar.