Alguma vez

te esqueceste de amar?

Às vezes sinto que me esqueci de amar.

Aquele amor simples, mas verdadeiro. Suave, mas constante. Transversal a todas as vivências, a todos os cenários. Aquele amor que te faz amar. Amar a sério. E amar a brincar. Amar. Não importa quem.

Aquele amor que é só porque sim. Sem génese nem finalidade. Sem lugar e sem voz. Sem tamanho, porque imensurável. Mas leve como o ar, quando se ama como quem respira. Quando se ama sem pretensiosismos, sem vaidade. Quando se ama sem dizer nada a ninguém. Quando se ama no segredo do coração, no brilho dos olhos, na paz do sorriso.
Paz... Amar assim faz-nos estar sempre em paz. É a mais verdadeira e certa fonte de paz esta forma de amar.

Já não me lembro como foi, quem me ensinou, mas aprendi a amar assim na minha primeira missão. Tão pequenina que era ainda, tão inocente, tão ingénua até. Mas não me esquecia de amar. Então talvez fosse bem maior que hoje.
Mas depois achamos que era preciso mais. Que amar não era suficiente. Tínhamos que produzir coisas. Ensinar coisas. Amar sempre, mas a fazer coisas, muitas coisas, novas coisas, sempre mais coisas.
E quando tentamos ser mais, ser melhor, às vezes deixamos para trás o essencial.
E ser mais faz-nos, afinal, ser menos.

Entretanto cresci, e tenho as responsabilidades de gente crescida. Trabalho efectivo para fazer, formações para preparar, parâmetros para avaliar, observações específicas que depois dão lugar a relatórios.
Mas descobri que às vezes me esqueço de amar.

Então tenho que voltar atrás, começar de novo.

Porque se crescer implica perder essa espontaneidade bonita de quem ama, então talvez não faça muito sentido.

Agora eu sei. Primeiro quero amar. Com o coração todo. Começar por aí.
E depois, sim, analisar, avaliar, fazer relatórios.

Vou aprender a ser pequenina outra vez. Só assim serei maior.

Vai passar.


Devia ser mesmo proibido.
O sofrimento, se tem que ser sofrido, que seja para ser transformado em aprendizagem. E não. Não é cliché nenhum. É, quanto a mim, das mais importantes das capacidades. Deixar a dor doer. E, a seu tempo, deixar essa dor dar lugar a algo maior, mais bonito, perene.

Ninguém é menos por chorar. Só não se pode chorar com pena de si próprio. Chorar é como quem lava a alma para depois seguir viagem. Às vezes parece mais fácil o aconchego numa tristeza que nem se compreende bem. E talvez seja preciso um pouquinho disso também. Depende do que nos dói. Mas mesmo enquanto magoa, que nos tranquilize a certeza da paz que virá, do assunto chato que ficará resolvido, do relatório interminável que conseguiremos acabar, da desmotivação que havia onde há agora entusiasmo, da distância que parecia não ter fim e afinal já transpusemos.

Porque, no fundo de nós, sabemos bem que vai deixar de doer. E temos que preparar o coração para esse momento.

Há dias, um amigo meu via uma amiga triste, a chorar, e sem saber sequer o que se passava, disse-lhe só:
- Vai passar. Seja o que for, vai passar.

Quando ouvi, o meu primeiro instinto foi rir. (Logo eu, que rio de tudo!)

Mas depois percebi como era bonita esta simplicidade. E como não podia ser mais verdadeiro.

Então é isso mesmo: vai passar. Seja o que for.

Mas mais importante é o que fazemos depois. O que crescemos com isso. A paz boa de sentir que aprendemos a valorizar. É como o arco-íris no fim de uma grande chuvada.
Que dentro de nós, nunca haja chuva sem arco-íris, e que nos demoremos mais nele do que na água que caiu.

Sempre que alguma coisa me dói, e porque não tenho paciência para essa coisa chata de estar triste, começo logo a pensar no que aquela situação específica me pode ensinar e atrevo-me até a ficar antecipadamente orgulhosa por ultrapassar o que ainda não ultrapassei. É batota, eu sei. Mas quando a finalidade é paz no coração e sorriso nos lábios, estas batotas são perdoadas.

 “É proibido chorar sem aprender.”
Não é proibido chorar. Mas é proibido não aprender.

Pelos caminhos da Guiné-Bissau

Acordar bem cedo. Saltar para dentro do jipe. Iniciar viagem. Estrada de alcatrão que rasga o mato das palmeiras e mangueiras, dos lagos que a intensa época das chuvas fez nascer. Cores de pessoas que cruzam a estrada, mulheres a caminho da bolanha, crianças em direção à escola. Seguimos caminho e os olhos fecham, a cabeça balança com o sono.
O alcatrão fica para trás. É agora a terra vermelha esburacada que segura os nossos solavancos.
No fim da estrada, o mar separa-nos de Bolama. Esperamos a canoa, pequenina. Tenho medo e rio de nervoso; a canoa a transbordar de gente, a mão mergulhada na água. Chegamos a Bolama, a ilha parada no tempo. As escolas que tentam ser esperança. As crianças, essas, iguais às de todo o mundo, rindo envergonhadas, contentes, despreocupadas. Sabe Deus as horas de caminhada para lá chegarem, o pouco que comeram, o trabalho que já fizeram de manhã cedo e o que ainda vão fazer antes de dormir.
No dia seguinte, voltamos a entrar na frágil canoa, a tremer, mas confiantes. E a beleza da paisagem distrai-nos do medo. Agora seguimos caminho para Tite. Tabanca no profundo interior da Guiné-Bissau, onde tudo é tão pouco, mas são muitos os poucos missionários que por lá se aventuram a mostrar Deus. São muitos os esforços, são muitos os dias de trabalho. São poucos os missionários, mas gigante a sua vontade. Valem por mil!
E eu, pequenina, já de regresso a Bafatá, relatórios fechados, com o mais importante por dizer. Não por falta de tempo, mas por falta de palavras.
Como dizer o indizível?
Se eu pudesse escrever tudo o que o meu coração diz, tudo o que sente, que me faz sentir; se eu tivesse palavras para cada angústia, para cada medo, para cada impressão; se eu conseguisse expressar a plenitude de cada alegria, a intensidade que cada descoberta acarreta; se eu pudesse escrever a verdade mais simples, se eu pudesse pôr em palavras as coisas que vejo e sinto sobre esta terra vermelha...
Fica, mais uma vez, este sentir sempre sem nome, porque sempre novo. E como é bom sentir sem nome…! É grande em mim e certeza de vida. Sentir. É só isto.
 
 
 

Não sei como Amar-Te.


Porque é difícil amar assim, sem saber bem quem És, o que És, mas sabendo-Te. Sei-Te.
Sei que me sabes.
Mas nem sempre sei ser em Ti.
Tenho saudades Tuas. Saudades.
Não sei se Te procuro como deveria. Não sei se estás aqui e eu não consigo ver.
Deixo a vida distrair-me.
Não Te esqueço. Mas nem sempre Te procuro.
Sei que gostas de falar baixinho, ao coração. Mas preciso que me berres ao ouvido. Para não me distrair mais. Para não me esquecer.

“E se algum dia eu me afastar de Ti, e se algum dia eu me esquecer de nós, vem procurar-me onde eu estiver. Não penses que sei ser sem Ti. Sou apenas um aprendiz de viajante.”

Essência

Há muita coisa a preencher os nossos dias, o nosso tempo, a nossa mente, os nossos espaços.
No meio de tanta coisa, tantas necessidades, tantos amigos, tantas ocupações, tantas roupas, tantos interesses... será que nos esquecemos de nós? Será que nos esquecemos do mais íntimo e simples? Será que deixamos de ver o mais óbvio? 
 
Acredito que todos, num momento ou noutro, nos demoramos na busca pelo essencial. Procuramos saber o que nos move, o que é realmente importante para nós.
Essencial não no sentido do básico, mas daquilo sem o qual não seríamos.
Não seríamos o que somos, quem somos.
Qual é, afinal, a minha essência? O que me faz SER?
Cuidado. A resposta é simples. Mas não estamos habituados a ser simples. A sentir simples. A desejar simples. Quando projectamos o olhar para longe à procura de respostas, os olhos esquecem-se de procurar no que sempre esteve ali tão perto. Esticamos o pescoço, erguemos a cabeça, arqueamos as sobrancelhas...
 
E lembro-me do que escrevi à minha mãe há não muito tempo:
Porque antes de saber para onde vamos, temos que lembrar de onde vimos, de quem somos. E porque a família será sempre a nossa casa, onde quer que esteja e onde quer que estejamos.
 
É como a saga do alquimista na busca pelo seu tesouro. Depois de correr todo o mundo, percebe que ele nem precisava ter saído de casa para o encontrar. Mas precisava. É incrível como crescemos quando saímos das nossas fronteiras (fronteiras geográficas, pessoais, emocionais, sociais); o mundo parece expandir-se para além dos seus limites; aprende-se tanto, cresce-se tanto. E, no fundo, é um crescer e aprender, e um descobrir um mundo maior só para reconhecê-lo mais pequeno do que alguma vez foi.
É engraçado, não é? Como vendo tanto, conhecendo tanto, viajando tanto, e todas estas experiências sendo tão profundamente gratificantes, enriquecedoras e significativas, algo em nós encontra um caminho que nos leva ao essencial. Mas também é verdade que voltamos a esse essencial com mais certeza, com mais verdade. Encontramos um mundo pequenino e agarrámo-lo com as mãos, transportando o mundo gigante dentro de nós.
Continuando a saciar a minha sede de mundo, hoje eu sei, no mais profundo de mim, o que é essencial.

Cenouras


Magia.
Preciso de magia. Preciso de ver coisas que façam os meus olhos brilharem. Preciso que os meus olhos brilhem. Nem que para isso tenha que ser eu a fazer a magia. A aprender truques e ensaiá-los. Mas preciso de magia. Mesmo que eu saiba o segredo por trás. Preciso de magia que semeie esperança no meu coração. Preciso de magia que me faça acreditar que tudo é possível. Porque se eu deixar de acreditar, nada mais é possível. E ainda é muito cedo para desistir.
Mas às vezes fico cansada, sem motivação, sem vontade. E ainda bem que me sinto assim, porque me obrigo a ultrapassar e crio mecanismos novos.
Estar pelo segundo ano na Guiné-Bissau é partilhar de cumplicidades construídas, de uma comunhão bonita com as pessoas, de uma aprendizagem profunda de tantas coisas que as palavras não conseguem abraçar. É já saber o caminho de cor e, mesmo assim, deixar-me deslumbrar pelas belezas repetidas, sem deixar que percam a intensidade que senti a primeira vez que as vi. Mas é difícil. É mais difícil.
Aceitar os constrangimentos diários constantes e multiplicados, lidar com os mesmos problemas já com menos paciência, o calor absolutamente insuportável, a dificuldade de fazer as coisas mais simples e a impossibilidade de fazer as mais elaboradas, as saudades de casa e dos meus, os bichos por todo lado, a instabilidade política e militar que nos mantém num clima de incerteza e insegurança perene…
Às vezes sinto-me como o burro que segue caminho a perseguir aquela cenoura que alguém pendura à sua frente. Com a diferença de que sou eu própria que coloco a cenoura à minha frente.
Porque quando os estímulos exteriores são, de todos os lados, no sentido de parar, ou seguir por outro caminho, lutar pelas nossas convicções, ou até lutar simplesmente pelo nosso bem-estar, implica voluntariamente seguir cenouras penduradas. E fazê-lo diariamente. Várias vezes ao dia até.
Não sei, de facto, se isto é teimosia ou perseverança. Mas chamemos-lhe perseverança. É mais bonito. Soa melhor.
Voltando às cenouras, a verdade é que me têm ajudado a seguir com o entusiasmo do qual não abdico. Frases que vou encontrando, imagens que alguém partilha, um livro, uma série que me faça rir com vontade. Tudo que possa promover o optimismo e a acção empenhada, dinâmica, criativa. Coisas que me obrigam a parar, a pensar no sentido mais profundo dos acontecimentos, a reflectir e construir paz bem dentro de mim. E a verdade é que sempre chego ao ponto em que consigo ultrapassar os obstáculos que inicialmente me pareciam intransponíveis, chego sempre à conclusão que afinal não era assim tão complicado, não era assim tão grave. Sempre reconhecendo infindáveis bênçãos nos meus dias e rendida a uma sensação de gratidão plena.
Claro que não demora muito até uma nova situação perturbar a serenidade alcançada, mas já sei o caminho para reconquistá-la rapidamente. 
É uma questão de treino.
O sorriso, a alegria, a boa disposição, não têm que ser sempre espontâneos. O optimismo treina-se.  E como tudo aquilo que treinamos, vamos ficando cada vez melhores, e ser feliz cada vez é mais fácil. E não, não são as circunstâncias que decidem. Somos nós. Sou eu. És tu.
E é difícil, claro que sim. É preciso treinar!
É preciso abrir bem os olhos e procurar na paisagem impulsos de alegria para seguir; é preciso saber encontrar nos dias os rasgos de humor, é preciso saber brincar sem pensar na desarrumação, é preciso jogar sem pensar em ganhar.

É preciso um quintal repleto de cenouras para colocarmos à nossa frente.
Se não temos cenouras, talvez esteja na altura de começar a semear.

Eternidades

No dia de hoje, é comum lembrarmo-nos dos que já partiram, dos que continuam a ser Vida em nós numa ausência que nos dói. Lembrá-los enche-nos o olhar de ternura.
E fico a pensar como são eternos em mim. Lembro-me de pensar nisto há dois anos, depois de uma perda me obrigar a construir eternidade no meu coração.
Parece contraditório, mas a eternidade pode ter diferentes durações. Acredito mesmo que a eternidade mora nos momentos que têm princípio e fim, muito mais do que no tempo infinito.
Mesmo quando choramos (e é preciso chorar), mesmo quando são pesadas demais a saudade, a efemeridade da vida e as ausências, é preciso aprender a celebrar as vidas que deixaram de ser corpo entre nós.
A efemeridade desaparece quando as vidas são partilhadas. A memória faz com que os momentos sejam reais, mesmo depois de terminados.
Poderá ser eterna a chama de uma vela, mesmo depois de se apagar?
Sim. Basta que alguém tenha contemplado a sua luz. Tudo que é contemplado é eterno.
Sorrio tranquila, feliz pela constatação da eternidade sublime que descobri, esta subtil e quase mágica perenidade de instantes e vidas.
 A vida não é feita de momento efémeros, saibamos nós construir pedaços de eternidade.