Fim

É a lei da vida, dizem. Cliché. Mais um. São tantos.
São tantos os clichés e, por mais que os queiramos evitar, não conseguimos fugir deles. É que não conseguimos!

Fim.
Inevitável palavra na última página do livro. Ponto final. E acabou a história. Literalmente.
Fechamos o livro.
Fim.
Noite. Acabou o dia.
Adormecer.
Fim.
Despedida.
Dizer adeus.

Crescemos a acreditar em eternidades, a aguardar um para sempre irrefutável, mas vivemos rodeados de fins. Estamos sempre a viver fins. Mas nem por isso eles se tornam mais fáceis. Não aprendemos. Não melhora.
E depois, temos essa mania disfuncional de prolongar o fim, de transformar o ponto final numas reticências que guardam o mundo que ficou por dizer e fazer.
Não gosto de reticências, raramente as uso. Faço um ponto final e continuo na frase seguinte.
E é disto que precisamos: frases inteiras, terminadas em si mesmas, embora parte de um todo que não se esgota. 
Mas na vida inventamos reticências e nem mesmo nós sabemos o que guardamos nelas. 
A vida também precisa de pontos finais para se construir literatura. Mesmo que doa. Porque dói. Vai doer. Vai passar. Claro que vai passar! Mas antes vai doer. É o fim, caramba, claro que dói!

Mas há uma coisa brutal que todos os fins trazem, uma coisa espectacular, a melhor de todas: princípios. Há algo melhor que um princípio? 
Como este ano a acabar: com a certeza do outro novo a inaugurar no segundo seguinte, deixamo-nos arrebatar no entusiasmo desse início cheio de possibilidades. Ninguém pensa que 2013 vai acabar, ninguém se demora nesse final. A contagem decrescente antes da meia-noite não é a despedida do ano, é a alegria e o acolhimento ao que está a nascer. Todos andamos a sonhar com o 2014, com a agenda nova de páginas em branco para preencher de luz, com as oportunidades intermináveis de vida.

Para que algo comece, é preciso, a maior parte das vezes, que alguma coisa tenha acabado.
Mas bom, a verdade é que não há poesia ou metáfora bonita que ajude a viver esse fim. Para isso, só o tempo. Mais um cliché. Não dá mesmo para escapar ao raio dos clichés? Não. Aceitemos e confiemos.

Às vezes é só o fim de uma recta que acaba nessa curva. Depois da curva? Talvez uma nova estrada, quem sabe uma que se estende pelos infinitos do mundo.


E é madrugada já. O dia, também ele, terminou. Um novo quase a amanhecer. É o princípio.


Surpresa de amor

Ela estava de saída. Ele veio para ficar. 
Doce ironia, irrecusável entrega.

"Quando menos esperares...", diziam. Cliché dos clichés, não é que foi mesmo assim?

E ela aprendeu a beijar sorrisos que não se fechavam. Aprendeu que os corpos podem ser mais do que o prazer, nesse sagrado sublime, espécie de ascese inconsciente. Aprendeu a ler os abraços e os suspiros que falam no silêncio denso de sentidos. Aprendeu o segredo do que se sente e as palavras não dizem, e aprendeu que quando as palavras o dizem, o sentir fica maior que o mundo, como que libertado pelo verbo. 

E assim, sem contar, nesse céu de estrelas cadentes, choviam sagrados e eternidades. Ele distraído, via apenas as luzes brilhantes. Ela corria a apanhar os pedaços dessa magia, a guardar no bolso esses bocadinhos de um divino tocado. Ah, sem exagero. Mas onde se concretizará o divino senão nesse recíproco desejo de alguém? 

Pois, mas é bom não nos envolvermos nesta história, porque ela estava de saída. Já tinha comprado o bilhete. E foi. Viagem demorada, que começou antes do início e continua mesmo depois do fim. 
Parece que toda esta história é apenas essa viagem. A sua preparação, a sua conclusão. 
E não é a vida uma viagem? 
Não é o amor uma viagem ao outro? E que viagem! Não vem no mapa esse destino, não há coordenadas GPS, esquerda ou direita. Apenas uma total desorientação boa de sentir. Uma entrega a esse caminho desconhecido e sempre novo, sempre surpreendente.

Foi uma surpresa. Ninguém estava a contar. Ela já nem sabia amar. Ou não sabia que sabia. Ou não sabia que podia. Foi uma surpresa.
Ainda é.
Às vezes, lá dentro da saudade, ainda fala mais alto essa surpresa de amor. 




Aterrar

Hoje acordei com a chuva a cair de leve na clarabóia do meu quarto. Como um acolhimento da vida, um aconchego da saudade a doer.
Tudo em mim é intenso. Tudo em mim grita. A gratidão que abraça. A distância que sufoca.
E essa suave chuva matinal a lembrar a serenidade à tempestade cá dentro.

É vida. O riso e a saudade, os reencontros e a distância, o para sempre e o nunca mais. Vida a acontecer. 
Hoje eu sei. E não queria que fosse de outra forma. É vida. Esse desassossego na respiração, essa turbulência nos sonhos que ainda não nos acordaram, nas vontades não satisfeitas, nas sedes que ainda não têm água, nos fins que não aceitamos definitivos. É vida. Essa gente que amamos, esses abraços que nos acolhem, as surpresas que não esperávamos, a paz que se impõe em nós no meio de fogo cruzado nos sentimentos. É vida.

Cheguei. O coração a aterrar devagar, com medo de pousar, como se continuar em viagem adiasse a concretização de um adeus. 
Mas cheguei. E o coração pousou. Um pouco forçado, agarrado por uma corda. Mas está aqui, comigo. Ri e chora nessa plenitude de sentir. Explode num fogo misturado de mundos e gentes. Inteiro de amor.
Cheguei.

Fazer as malas

















Pois é... há coisas que não cabem nas malas. 

Estou desde ontem a enfiar coisas dentro das duas malas que me vão acompanhar até Casa, e agora, quase prontas, continuam vazias. Não de espaço, que esse está bem aproveitado. As minhas malas vão vazias do que realmente importa; vão vazias dos sentidos e das aprendizagens, vazias das mil eternidades tocadas, dos instantes em que o céu era mais perto. As minhas malas vão vazias do meu coração a explodir, das lágrimas dos meus olhos, da saudade do que ainda não passou. As minhas malas vão vazias das cores, do peso da terra, da chuva a molhar a pele, dos relâmpagos a incandescerem a alma. As minhas malas vão vazias do corpo sentado no chão, das estradas que cortam os matos, das estrelas a queimar no céu. As minhas malas vão vazias de conversas intermináveis, de gargalhadas patetas, de companheirismo, de entrega, de fascínio.
Nada nestas minhas malas... nem uma só descoberta no bolso lateral, nem um sorriso escondido debaixo duma camisola, nem mãos abraçadas em cumplicidade dentro das meias. Nada. Só roupa, acessórios, livros antigos, sandálias. Como podem estas malas tão pesadas não terem nada interessante lá dentro?
E este vazio das malas rasga em mim o corpo de sentires, nessa responsabilidade gigante de guardar tudo, de não esquecer nada.
Se as minhas malas se extraviarem no caminho, a TAP tratará de me restituir os bens perdidos. Mas e isso tudo que levo dentro de mim? Quem se responsabiliza? A quem vou reclamar se perder momentos, imagens, significados?
Devíamos poder fazer um seguro da nossa memória.

Lembra-te.

Não podes ir embora sem te lembrares. Não podes ir embora sem reveres e guardares.
Lembra-te.
E lembra-te enquanto estás aqui, nos dias que te sobram repletos de tanto, perto ainda das memórias a gravar.
Lembra-te.

Lembra-te de quando aterraste em Bissau pela primeira vez. Do ar húmido a colar no corpo, a dificuldade em respirar. Lembra-te da sede, essa saciada e sempre repetida. 
E lembra-te de te sentires em casa desde o primeiro instante; o longe a doer, o coração a pousar.

Lembra-te de cumprimentares as pessoas na rua, lembra-te de quereres saber os nomes. 
Lembra-te das pequenas coisas e da tua capacidade de vivê-las em plenitude. 
Lembra-te de procurares soluções para os problemas e de todos eles tirares um ensinamento.

Lembra-te dos banhos-de-chuva, da água completa em ti, do fresco a explodir, de risos molhados e partilhados com gente que rasga o teu coração.
Lembra-te de saltar para o rio Geba meio segundo depois de afirmares que nunca o farias.
Lembra-te das estrelas cadentes numa pickup debaixo do céu e das pessoas que estavam contigo nessa caixa aberta para o mundo.

Lembra-te de dançares como se se a tua vida dependesse disso, como se fosse a última noite.
Lembra-te de sempre ser para sempre e quereres sempre mais e, ainda assim, tudo te bastar.
Lembra-te de te sentires a crescer, sendo cada vez mais pequenina.

Lembra-te dos amigos que o serão para sempre, de como te acrescentam vida e beleza, de como aumentam o mundo que conheces e partilhas, de como são grandes no teu coração.
Lembra-te da coragem da entrega, de beijares sorrisos e experimentares o sagrado em intervalos de lucidez.

Lembra-te das cores, dos sons, dos cheiros. Fecha os olhos e vê, ouve, cheira. Sente.

Mas lembra-te também das frustrações repetidas e somadas, de quando parecia que não ias aguentar mais. Lembra-te da paciência esgotada. Lembra-te da lama e da poeira. Lembra-te dos mosquitos, dos grilos, das baratas, dos lagartos. Lembra-te dos militares, dos políticos de treta. 

Lembra-te do escuro e lembra-te das lanternas a iluminar.
Lembra a Guiné inteira em ti, no bom e no mau; e deixa-a ser esse todo que é teu, assim.
Chora. Deixa essa saudade ser recipiente que guarda tudo isto. É essa a verdade.

E lembra-te de ti na Guiné. De quem eras quando chegaste, de quem és agora que partes.
Como te disse a tua alma irmã, "lembra-te de quem és no sítio para onde vais".
Lembra-te.

Cabelo ao vento

















Naquela noite, a lua estava um pequeno arco. Um sofá, um abraço, um baloiço. Dava vontade mesmo de deitar lá, de ficar nesse repouso aconchegado, sem tempo e com todo o tempo do mundo, sem pensar nada que não no prazer desse encontro. E a lua não ia dizer nada. E eu também não. Deixaria que as estrelas contassem o que eu não sei falar.


Às vezes, a vida põe-nos o cabelo ao vento. Como uma passadeira rolante; por mais que nos sentemos num lugar, a vida segue adiante, e nós seguimos com ela. Se estivermos atentos, sentimos mesmo esse vento no cabelo e deixamos o corpo tombar para o lado nas curvas. 
Há momentos em que andamos para trás, mas afinal não saímos do lugar, porque a passadeira continuou a rolar. Outros momentos, apressados,  caminhamos ou corremos, acelerando a vida. Depois, cansados, encostamos no corrimão, deixamos a vida correr sozinha.

Hoje sinto o vento bater-me no cabelo. A passadeira segue numa velocidade estonteante. Sabe bem esta brisa no quente que sinto explodir em mim. Esse calor de vida a acontecer. 
E hoje não haverá lua no céu; ficou pequenina até desaparecer, só pelo prazer de ser fazer nova outra vez. Esta noite ela não será subterfúgio de metáforas desajeitadas. Fica a vida sem figuras de estilo, apenas a poesia sentida e inexpressável.
Sabe bem esta brisa. Não sei parar a passadeira, não posso saltar. Tenho que me deixar ir, o fogo em mim, a brisa a acalmar.

Entretanto

De partida.

A Sóninha dizia há tempos que chegar à Guiné-Bissau não é um acto, é um processo. 
Partir também. Um processo lento, demorado, daqueles que se arrastam em tribunal recorrendo a todas as instâncias possíveis.
Pode parecer estranho, mas as despedidas são vivências profundamente solitárias. E só assim fazem sentido. Por mais que se materializem abraços e cartas, a verdadeira despedida é aquela que se vai fazendo em segredo no coração, nos momentos de silêncio em que todos trabalham concentrados, nos momentos de confusão e euforia em que todos dançam o corpo inteiro de paz e riso, e eu me paro em segundos demorados de contemplação. 
E estas pessoas bonitas e gigantes lá dentro de si, ficam ainda mais bonitas e mais gigantes. Eu a beber as suas belezas em solenidades que finjo banais. 
E a minha Guiné fica mais minha. Tão minha. Tão dentro de mim. Eu tão nela. Tão.
Porque vou embora, mas ainda não fui.
Entretanto, eu continuo aqui, entre tanto. Tanto!

Sagrado

Como se reconhece o sagrado? O que é sagrado?

Acho que o sagrado está para além de qualquer religião, ainda que eventualmente transversal a todas elas. O sagrado está na vida, e aparece de surpresa, quando menos contamos.

Aparece no mais mundano dos prazeres, no mais profundo e mais intenso dos prazeres, rasgando-o, superando-o. Sem pedir licença, sem avisar, sem se fazer notar. E assim distraídos nesse deleite sensitivo, quando parece não haver mais nada a sentir, eis que o sagrado ocorre. Como identificá-lo? Ah! Pudera eu preservar sequer a memória de o ter vivido! É que é tão intangível, que não há como gravá-lo num qualquer modelo conceptual. Não, claro que não dá para descrever. E olhem que eu tentei! Olhem que eu me demorei em viagens de vocabulário para conseguir concretizar isto numa qualquer palavra, ainda uma que inventasse num novo desenho de letras. Mas este sagrado é duma transcendência que até senti-lo nos foge. É um sagrado que não é nosso, não nos pertence. Desce nessa dádiva inesperada de explosão serena de um elemento desconhecido, pedaço divino de viver, instante imaculado de razão.

Loucura

- Mónica, nós somos doidos?
- Como, Irmã?
- Nós somos doidos?
- Nós quem, Irmã? Nós "todas as pessoas do mundo"?
- Nós, todos os que saímos dos nossos países! Não somos doidos??
- Somos sim, Irmã! Somos sim!
- Não somos normais, pois não?
- Não! Mas também a Irmã não queria ser normal, de certeza!
- É... É isso que estou falando! É bom não ser normal. 
(...) 
Se bem que, de vez em quando, eu queria ser normal. 
Estou com saudades. 
(...) 
Vai passar.

Ah! É preciso ser doido mesmo! Ser doido para sair de casa, ser mais doido ainda para voltar. Ser doido para conhecer, partilhar. É preciso ser muito doido para amar. Ninguém no seu juízo perfeito se põe a amar pessoas assim à toa. É que isso dói. Só doido, bêbado talvez, um alguém se permite a desvarios dessa ordem. Pois claro!
Mas há momentos em que bate aquela vontadezinha de ser normal, simples, de experimentar tédios de rotinas e lugares, de não cansar o riso de entusiasmos, de não atormentar o coração de despedidas. E logo passa. Cedemos sempre ao encantamento da loucura, à constante inconstância, à saudade, às borboletas na barriga. Cedemos sempre à Vida. Vivemos. Não, não somos normais. Somos doidos. Que bom!

Os loucos, os verdadeiramente loucos, permitem-se essa loucura, escolhem essa loucura.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, guardam na loucura a força para continuarem a ser loucos num mundo de lucidez cega, de sensatez insípida.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, aprendem de cor o bom-senso da normalidade e representam-no em qualquer palco; como quem brinca ao faz-de-conta, eles brincam à seriedade e à prudência, intervalos da sua saudável demência.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, acreditam, confiam, entregam-se, lutam. Só sendo louco mesmo...

Neste mundo é preciso seres louco. Se não, vais enlouquecer.

Desassossego

Viver. Viver encanta. Viver assusta.
Porque viver (viver mesmo! não o simples estar vivo) é esse desassossego intermitente. Essa estrada esburacada que aprendemos a amar. Decoramos os buracos e desviamo-nos com agilidade, mas haverá sempre um novo a surpreender-nos. 
A vida é essa corrida de obstáculos, esse todo-terreno em que somos veículos extremamente bem equipados, ainda que não dominemos toda a tecnologia, porque frequentemente escolhemos os caminhos mais fáceis, mais seguros. E demoramo-nos a olhar mapas, seguindo pelos rumos mais directos, menos complicados. 
A verdade é que, muitas vezes, as coisas mais bonitas são as de mais difícil acesso. Como o caminho para a praia de Varela ou a estrada para o Parque de Cantanhez, na Guiné-Bissau. Às vezes, a meio da viagem, ficamos a pensar se valem a pena tantos saltos, se não tinha sido melhor ir a um sítio mais acessível. E é só chegar lá para se esquecerem rapidamente as dificuldades do trajecto. Mas depois é preciso voltar, viver tudo de novo.

E como me disse hoje alguém, sábio gigante nas suas dúvidas mais ricas que todas as certezas: "Tomei duas decisões: vou amar e vou sofrer." Aceitando o segundo pela inevitabilidade do primeiro. Aceitando o sofrimento pelo inteiro do sentir e ser, pela plenitude que é irrecusável, pelo inadequado da autenticidade e do instinto que inventam errados que incomodam a nossa verdade no outro.
E aceita-se assim a estrada inacreditavelmente esburacada para chegar à praia de Varela. É que vale mesmo a pena!

Estes dias dou por mim a pensar neste meu culto exagerado pela serenidade.
Tenho percebido que o tal sossego bom de sentir pode ser viciante: porque em vez de nos libertar, escraviza-nos dessa segurança e limita as nossas ousadias.
Porque, na vida, é preciso aceitar perder a paz para ganhar intensidade. É preciso aprender esses sobressaltos bons que lembram que os dias não são todos iguais, que a vida não é só o que planeamos (quase nunca é!). É aceitar perder essa serenidade que demoramos tanto a construir, é abdicar desse equilíbrio de que tanto nos orgulhamos.
Viver. Viveeeeer!


Um dia num minuto

Café. Trabalho. Leis e organigramas. Paisagem para o rio. Mais trabalho. Caipirinha. Gente linda numa sala em Bafatá. Risos à toa. Personagens na testa. Perguntas. Mais risos. 
Era só uma. Dissemos que era só uma. Outra?
Estrelas. Muitas. Nessa banalidade luxuosa de um céu humilde na sua grandeza, inteiro na sua partilha. Carrinha de caixa aberta posicionada. Cobertores e almofadas para encostar. Olhos atentos. A estreia. Estrela que salta no céu e desaparece. Conversas tontas. Piadas sem piada que fazem rir mais do que se tivessem piada. O céu que se mexe, e nós quietos, cientistas de novas leis do universo. Uma noite de sexta-feira inventada quando amanhecerá quarta-feira. Provérbios reformulados. Madrugada. Só mais uma estrela. Afinal foram duas. 
Confiar ou não? Viver! Beijar sorrisos. Mais estrelas de olhos fechados. O céu dentro de casa. Dormir.

Pedacinhos de vida

“Ganha a última equipa a chegar.” 
Terminei eu assim a explicação de um jogo que nos ocupou hoje a tarde nas Jornadas de Lançamento do ano lectivo 2013-2014 das escolas das Missões Católicas de Bafatá.
“Mas, Mónica, os últimos é que ganham??”
Ri de mim própria, e corrigi o erro. Os primeiros é que ganham, pois claro!

É assim quando se dorme pouco em noites de conversas no alpendre e dias de muito trabalho. Olhos pesados a quererem dormir, mas coração inquieto pela Guiné-Bissau em mim, pela eminência de uma despedida que se vai aproximando timidamente, pela sensação de haver ainda tanto a viver e saborear.

É preciso ousadia para ser feliz. É que pode ser mal visto, mal interpretado.
Aparentemente, sou assim algo desavergonhada nessa coisa da felicidade. É o que dizem. E parece que devia disfarçar a minha alegria, contê-la talvez, fechar a cara um pouco para ser levada a sério e não dar espaço a abusos.
N’ka nega, ma n’ka pudi! - diria no crioulo da minha Guiné-Bissau, uma espécie de “Não é que eu não queira, mas não posso / não consigo.”
Na verdade, não quero mesmo. Perdoem-me os mais austeros, mas continuarei neste exagero de sorrisos e gargalhadas. Vá, e nem é tão exagerado assim.

Dizia agorinha o Pierre: “A Mónica ri tanto, que parece que vai acabar de rir hoje; amanhã já não terá risos.” 
Tenho! É que eles multiplicam-se. É como o fogo que quanto mais queima, mais tem para queimar. O riso é essa alegria boa a arder cá dentro.
E rimos tanto esta tarde! Numa actividade em que aprenderam tanto quanto se divertiram. Afinal os adultos na Guiné-Bissau são só crianças cujo corpo envelheceu: brincam inteiros de entusiasmo e reivindicam as batotas no faz-de-conta como nunca se atreveriam no mundo real. Como foi bom vê-los soltos e confiantes, orgulhosos e empenhados. Por isso continuo a rir, o coração repleto a suspirar. 
E não estava tão errada assim: terminado o jogo, ganharam os primeiros, mas também os últimos, e os que ficaram em segundo lugar… e todos!

E ganhou o Braima. Nada a ver com o jogo. É o professor de Empada que faz sempre mais do que pode, quase a trocar a expressão guineense que referi acima: ele não pode, mas quer, então faz. Como? Eu sei lá. Já expliquei que de milagres sou apenas testemunha, nunca percebi como funcionam. 
E então o Braima hoje ganhou uma mota; doação que a FEC tinha disponível para uma escola e ele foi o feliz merecedor. Menino contente de olhos gigantes de entusiasmo, manhã de Natal em contemplação do novo brinquedo, quilómetros de vida (um pouquinho) mais fácil. 
No final da tarde, depois de todo o trabalho e de toda a brincadeira, deixei-me estar no alpendre a apreciar ao longe a devoção com que se demorava na mota. Uma imagem absolutamente encantadora! E o meu coração sempre mais cheio!
(Meu Deus, como é que eu hei-de ir embora?)

Ah, e os três estarolas no escritório? A cumplicidade é mesmo a melhor coisa do mundo. Nesta sou mera espectadora, que não apanho a maior parte do que se passa ali, mas delicio-me com as piadas que não percebo, com as conversas em meias palavras porque a outra metade é adivinhada. E mesmo sem participar, gosto de vê-los nessa construção bonita. Gosto de ver equipa outra vez; essa coisa de gente tão diferente que encontra uma forma de se encaixar e funcionar como um todo, mesmo sem se aperceberem.

E eu só assim, assistente de pedaços da vida a acontecer. 
Como podia não ter o coração a rir em explosões de paz? 
Ah! N’ka nega, ma n’ka pudi!


Do medo

Medo de sentir. Medo de não sentir. Medo de querer. De querer mais. Medo de não querer mais.
Medo de partir e medo de ficar. Medo de mim no outro; medo dele em mim.
Insegurança. Vulnerabilidade. 
Medo.
Não de ladrões ou psicopatas; não de cobras ou trovoada. Medo da vida. Essa coisa a acontecer e a mexer cá dentro, que aperta e confunde, que encanta e extasia.

O medo é a maior complexidade da vida. Complica tudo. Equaciona tudo. Não entrega nada. O medo trava, esconde, disfarça. É a maior ditadura a limitar a nossa liberdade.

Quantas coisas deixamos de dizer e de ouvir? Quantas coisas deixamos de sentir?

Como seríamos nós, se não tivéssemos medo?
Como seria este mundo cheio de gente que diz o que sente, que abraça quem deseja, que vai onde quer? Um bando de loucos a rir à toa com o coração a explodir paz.

Ontem adormeci a pensar neste medo e a sentir que, de alguma forma, ele me protegia. Mas, de novo, aquela velha questão:
O que farias se não tivesses medo?

Sei a resposta. Sei sempre a resposta.
Houvesse ousadia...

Relâmpagos

Banho-de-chuva. O último?

Final da tarde. Noite escura já. Trovoada ao longe avisa mais uma tempestade eminente. A chuva forte começa a cair. Forte como um ímpeto. Intensa como a vida. Uma intensidade boa, pois assim a desenhamos em nós ao recebê-la.
Nós no alpendre. Abrigadas de uma chuva que não respeitava abrigos e nos salpicava, em jeito de desafio. À nossa frente, o negro cerrado da noite rasgado por rectas de água a mergulhar na terra. O negro cerrado da noite interrompido por instantes em que os relâmpagos faziam dia.
“É a minha coisa preferida aqui!”, berra a Carmen, para que a sua voz falasse por cima do temporal. E estaríamos muito bem ali as duas nesta contemplação inquieta, não fosse a chuva gritar em nós a energia boa de quem se oferece inteiro. A chuva, tanta que só toda, pedia um acolhimento recíproco à sua dádiva. E já se sabe que nós não lhe conseguiríamos dizer que não.
Lá fomos então, primeiro a medo, que isto da chuva no escuro e dos relâmpagos a incandesceram a noite, exigia uma certa ousadia.
E à magia de receber essa água que cai do céu, junta-se a maravilha dos instantes de luz de cada relâmpago: ofuscavam os olhos e voltávamos ao escuro, à água; a roupa colada ao corpo. Os relâmpagos aproximam-se, e com eles trovões bem mais forte. Gritinhos de histeria, claro está, uma espécie de medo bom, e nós continuávamos ali. Frio, saltos para aquecer, olhos ao céu num clarão de mais um raio de luz. Vida a acontecer só porque sim.
Gritei mais do que nunca com a trovoada. Como se aquele entregar genuíno a esse momento de simples deleite limitasse a capacidade de conter os sobressaltos a cada novo ribombar.
Depois chegou a altura de caminhar no escuro de volta a casa. Entre um passo e outro, mais um relâmpago a iluminar o caminho. A seguir o banho de chuveiro, pobre imitação da aventura vivida. Depois a roupa seca no corpo e ainda o contentamento emancipado de razões.

O melhor da vida é mesmo fazer coisas sem sentido só porque as sentimos. Caminhar para debaixo da chuva nesse impulso infantil de querer brincar. Não esperar nada e receber como oferta essa alegria sem motivos, sem pudor, sem cerimónias. Aceitar absoluta esse efémero pedaço iluminado, e torná-lo perene pela plenitude com que foi acolhido.
E é neste relâmpago que queria demorar-me. Nesta magia de micro segundos em que a luz explode. Foram dois anos na Guiné-Bissau. Minha Guiné-Bissau. Serão mais dois meses. Depois o caminho segue. Olhos esbugalhados ao céu à procura de novos relâmpagos.

O último banho-de-chuva?

A vida são estes relâmpagos que rompem o escuro da noite debaixo da chuva. A vida não é esse escuro, mas os instantes de luz que continuam a brilhar nos nossos olhos mesmo depois de se apagarem. 
A Guiné continuará a brilhar em mim. Nos meus olhos, no meu coração, nas palavras, no caminho. A Guiné continuará a brilhar como um relâmpago que explode cá dentro. A Guiné continuará em mim. Sempre.

Faz-de-conta

Há um país onde se vive em permanente faz-de-conta
Faz de conta que estamos em Paz. 
Faz de conta que podes dizer o que quiseres. 
Faz de conta que vives em democracia. 
Faz de conta.

Não é um conto de fadas, não há princesas nem dragões. 
Há sítios encantados pelas gentes sagradas de um país que se quer inteiro a avançar, mas se vê travado e submisso. Não é um lugar do mundo da fantasia. É um chão de terra vermelha onde dançam as revoltas, onde se pisam as mágoas cansadas. É real. Mas faz de conta que não é.
É a brincar ao faz-de-conta que se vive nesse país. É a brincar que se segue pelos dias, é a brincar que se conversa nos djumbais das varandas, é a brincar que se esperam Eleições marcadas para breve. 
Ninguém diria que é uma brincadeira. Tal é a seriedade imposta neste faz-de-conta. Num jogo onde já se conhecem as regras de cor. 
Há quem não queira brincar (haverá quem queira??), mas neste jogo todos entram. Porque quando alguém se esquece do jogo, ou não quer brincar mais, e vai à sua vida normal, de verdades e preocupações, alguém vem lembrar que isto não é uma brincadeira de crianças. É um jogo de gente grande, ainda que muito pequenina. E é para levar a sério.

E sim, sim, está tudo bem. Mas estás a falar de quê? Talvez seja melhor falarmos de outra coisa...
É que eu que ainda não aprendi as regras, mas já vou brincando ao faz-de-conta. E às vezes até acredito nessa Paz fingida. Faz de conta.

Zona de conforto

Dizem que é quando saímos da nossa zona de conforto que a magia acontece. É preciso uma certa dose de ousadia e confiança. E de amor. Aquele que trazemos em nós e nós e nos faz relacionar com os outros, quem quer que eles sejam, com interesse, disponibilidade e ternura. E assim, a tal zona de conforto vai ficando maior. 
Será?
Às vezes fico com a sensação de que a nossa zona de conforto não aumenta, apenas se desloca. E voltar é, afinal, mais difícil do que foi partir.
Acho que quem cresce somos nós. Mas será sempre preciso voltar a ousar e a confiar, repetidamente. Isso é que fica mais fácil. É uma espécie de treino de despojamento, em que nunca nos tornamos atletas profissionais, mas não desistimos de praticar.
Não é, portanto, a zona de conforto que fica maior. Somos nós que deixamos de nos contentar com o conforto em si. E vivemos de ousadia em ousadia. Sempre em desconfortos que nos dão vida. Sempre em direcção a horizontes que projectamos num qualquer infinito sonhado.
O assustador torna-se não ousar. Voltar. Levar tudo contigo, depois de teres deixado tudo de ti. Esse todo que deixas e que levas. Preparar a bagagem com cuidado, sem deixar faltar nada. Quando voltamos de viagem, as malas vêm sempre mais descuidadas do que foram na partida.
Mas para voltar inteiro, é preciso sentir que se está a partir. Só quando partimos nos entregamos, em plenitude, às acções e às pessoas.
Se queres voltar, fá-lo como quem está a partir.

"Hoje as pessoas são felizes

e não sabem."

Há umas semanas atrás, ainda de férias em Portugal, acompanhei a minha avó em visitas a amigas que ela já não via há anos. Acreditou ela serem os últimos momentos partilhados com aquelas pessoas, nesse fatalismo conformado que aparece a partir dos 80 anos.

A primeira visita foi a uma senhora de cerca de 87 anos de idade, Isabel, acamada depois de amputação de ambas as pernas, que nos recebeu com um sorriso doce, cheia de vida e com uma lucidez e  um discernimento que eu própria invejei. 
A conversa lá seguiu, eu espectadora, deliciada a ouvi-las lembrar os tempos, as pessoas e as histórias. Eram duas meninas. Da pele enrugada pelos anos, sobressaiam olhos brilhantes e contentes de meninas que se encontram na sublime cumplicidade da memória.
E falaram das suas pessoas e das suas saudades.
Pelo meio das histórias, os pormenores das condições de vida e das distâncias tão maiores de então, ilustravam dificuldades e carências. Estas, de há uns 60 anos atrás, lembravam-me as da Guiné-Bissau hoje em dia. 
Mas os relatos das privações apareciam sempre como acessórios na história. Não era isso o mais importante. A essência era mesmo as vivências e as partilhas, a forma como os obstáculos eram ultrapassados e o mundo continuava a avançar. 
Ainda assim, neste afastamento de décadas onde no presente elas próprias têm tanto de tudo, reconheciam nos constrangimentos de outrora alguma dureza dificilmente suportável actualmente. Nestes momentos, a D. Isabel terminava sempre a sua reflexão a dizer: Hoje as pessoas são felizes e não sabem. Mas dizia-o num misto de ternura e nostalgia, e não com aquele desdém que ouvimos às vezes. 

Hoje as pessoas são felizes e não sabem.
Fiquei a pensar nessa sabedoria extra de quem viveu tempos tão diferentes e nessa triste ignorância de não se saber feliz. 
Incomoda-me como nos perdemos em caprichos e como repetidamente inventamos novos desejos, sem nunca nos pararmos em instantes de gratidão. Incomoda-me sentir que eu própria nem sempre me lembro de agradecer, nem sempre me lembro da essência.
Saí dali contente por este incómodo em mim.

Às vezes, viajar no mundo faz-nos, de facto, perceber como somos felizes sem saber. 
Viajar no tempo também.

Sede

Sede de partir. Sede de voltar.
Acho que gosto tanto de água, ou de como ela me sacia, que me perco a inventar sedes. Como se a sede fosse um prazer em si própria, pela antecipação desse saciar, que rapidamente se transformará em novas sedes. 
E claro que não falo de uma garganta seca, mas de um caminho que se bebe em trajectos. De inquietudes que ora inspiram, ora atormentam; ora encantam, ora desorientam.
Desorientar. Tirar a orientação? Talvez seja mesmo isso o necessário. Colocar uma venda nos olhos, esquecer o mapa que decorámos, girar vezes sem conta, parar, e deixar que seja só o coração a escolher o caminho. O de sempre, um novo, ou simplesmente voltar ao princípio e começar tudo de novo. Simplesmente... Às vezes era bom ser mais simples. Deixar acontecer e confiar. Às vezes era bom deixar que a banalidade nos surpreendesse, que o mais vulgar dos acontecimentos fosse épico em nós. Mas é tão complicado ser simples!

Porque o nosso corpo precisa de água, inventam-se sedes.
Sede de encontros, de conversas, de palavras que ainda não têm letras. Sede de sons. Sede de silêncios. Sede de cores que ninguém viu e ninguém inventou. Sede de uma música que nunca ouvimos. Sede de um lugar que nunca visitámos e nem sabemos se existe. Sede de pessoas que ainda não nasceram. Sede de todos sóis que se hão-de erguer, de toda a chuva que há-de cair, de todo vento que será sopro no mundo. Sede de crescer e de ser pequenino. Sede de ficar, de construir, de ser, de pertencer.
E sede de ter sede, quando um dia acabarem todas as sedes.

Lista

Quando estamos a trabalhar longe e nos demoramos em férias por casa, voltar a partir pode ser um pouco doloroso. Foi assim que regressei há uma semana à Guiné-Bissau e me deixei surpreender depois no entusiasmo e aconchego que senti ao aterrar. 
Afinal, porque sou feliz aqui? O que me encanta neste pequeno pedaço de terra? 
Para não me voltar a esquecer, fiz uma lista.

1. Beber água
Eu gosto muito de água. É mesmo a minha bebida favorita. Mas há uma sede que só pode ser saciada em África. Talvez porque só aqui a sede seja tão intensa. Nenhuma água vai saber tão bem, porque em nenhum outro sítio tens tanta sede.
Logo no aeroporto, já cá fora, quando uma amiga me estendeu uma garrafa de água, voltei a sentir como é bom saciarmo-nos por cá. E só tinha aterrado há uma hora.

2. Noites de lua cheia
Sim, a lua é bonita em qualquer lugar do mundo. E nem precisa de estar cheia para que a fixemos, deslumbrados, no céu. Não é de beleza que falo. É de luz.
Por aqui, as noites são bem mais escuras que em Portugal. Quando é de noite, é escuro mesmo. Não há iluminação nas cidades. E não há ninguém - ninguém! - que saia de casa sem uma lanterna. A não ser - lá está - nas noites de lua cheia. 
É incrível como uma lua grande nos enche de luz. Parece sempre que é final da tarde, quase noite, porque nunca chega a escurecer por completo.
E não consigo deixar de ficar fascinada como uma lua, que nem sequer tem luz, partilha connosco esse brilho reflectido do sol.

3. Adormecer
Em nenhum outro contexto me sabe tão bem pousar a cabeça na almofada e adormecer ainda antes de terminar o meu pensamento acerca de como é bom adormecer assim.
Adormecer do cansaço bom e inteiro dos dias... É o melhor sono.
Nem quando chegamos de um dia muito atarefado, nem quando passamos a noite a dançar com os amigos. Nunca é um cansaço assim. Nunca é um adormecer assim.

4. Encontrar pessoas na rua
Sim, também é bom encontrar os amigos sem contar quando vamos ao cinema, estamos a passear na praia ou nos cruzamos no corredor de um qualquer hipermercado.
Mas nunca serás acolhido e cumprimentado com o entusiasmo que recebes aqui. E tu próprio acolhes e cumprimentas como nunca o farias num outro espaço do globo.
E porque estas pessoas te ensinam nos seus quotidianos outra forma de amar, que descobres em esconderijos de ternura, em subtilezas de quem se entrega gratuito.

5. O fresco da manhã
É quente o dia todo. Em todos os lugares. Em todos os instantes. Mas há ali um período, de manhã cedo, em que, ainda de pijama, vais até ao alpendre... O dia a amanhecer, ainda a preparar todo o calor, e sentes que está ligeiramente mais fresco do que estará depois. Não é frio, nem nada que se pareça. Mas é o melhor que terás e tu ficas ali a saborear uns minutos, antes de iniciares mais um dia. É um momento sagrado.

6. Tempo com tempo
Engane-se quem pensa que por aqui é tudo muito tranquilo e nunca há pressas ou prazos apertados no trabalho. Sim, o stress também já chegou aqui.
Ainda assim, cabe mais tempo no tempo. E há sempre tempo. 
Uma sensação boa de controlar os dias e as semanas e de fazer tudo o que  queres. O que te falta em distracções extra (televisão, centros comerciais, bares, cinemas), sobra-te em conversas e leituras.

7. Paz
Isto é um cliché, mas - provavelmente por isso mesmo - é a maior das verdades. 
Há uma paz inexplicável que se sente por aqui. Não falo de paz política - porque com essa, a Guiné-Bissau ainda só sonha - mas de paz interior.
Não que todos os teus problemas fiquem miraculosamente resolvidos assim que pisas solo guineense, nem que deixes de ter inquietações, angústias ou sofrimento. Mas tudo isso é sempre envolvido por uma sensação de paz. Uma serenidade que não sabes de onde vem, mas se impõe em ti.

8. Banhos-de-chuva
Pois claro que não podiam faltar os banhos-de-chuva tropicais!
Repetindo o que não me canso de dizer: não há nada (ou quase nada) que a água não limpe. E uma chuva forte a cair em ti tem o poder de acalmar o calor tórrido dos dias, de te renovar, de fazer explodir em ti entusiasmos e energias. Depois de um bom banho-de-chuva, há uma parte de ti que renasce.
Água é vida. E a água que cai lá do alto e te molha quando a recebes inteira, é uma espécie de ligação entre o céu e a terra. Por momentos, tudo faz sentido.

9. Cores
As cores em África são mais vivas, mais brilhantes. Os olhos vibram e todos nós estremecemos um pouco. São os sorrisos brancos que saltam do castanho dos corpos. É o verde das árvores no laranja da terra. São os muros das casas, as pinturas dos carros. Tudo é cor. Sem acessórios de luxo, é  a cor que enfeita a vida.

10. Simplicidade
A simplicidade das pequenas coisas que em nenhum outro lugar do mundo te lembras sequer de saborear. E aqui, sendo tudo o que tens, ainda que pouco, são tanto e são tudo. 

Renovar

Como o dia que não se cansa de nascer, que possas também renovar-te. 
Deixa a noite cair em ti; descansa os braços, não traves mais a escuridão. 
Deixa que o escuro te envolva e aceita-te nessa paz. 
É só quando aceitas que é noite e te entregas a ela, que dás espaço para que venha o dia. E com ele novos desafios, novos entusiasmos, novos caminhos.
Renova-te. Ergue-te num amanhecer. Faz uma nova manhã dessa tua noite.



Entre casas

Ontem saí de Casa. Hoje cheguei a casa. 
Esta última tem letra minúscula, mas é já grande em mim.

Depois de quase dois meses em Portugal preenchidos de pessoas e aconchegos, regressar à Guiné-Bissau traz aquele desconforto de uma dor que não sei bem identificar, daquelas que não matam mas moem. E distraída que vinha nessa espécie de mal-estar, fui surpreendida pelo meu coração que saltou contente ao aterrar em Bissau. 
Logo a descer as escadas do avião, o calor húmido envolveu-me e colou-me a esta terra, como que em jeito de acolhimento, quase que a lembrar-me que também lhe pertenço. Suspirei e sorri sozinha. Tinha-me esquecido que sou feliz por aqui. Tinha-me esquecido - no meio da confusão das despedidas - das pessoas que ia (re)encontrar por cá. Tinha-me esquecido, naquela ingratidão de quem vê os seus desejos atendidos, que este trabalho e esta vivência são o meu sonho. 
E é incrível, e até paradoxal, como neste país de eterna instabilidade política e militar, a primeira coisa que sinto com uma força extasiante mas serena, é a mais firme sensação de paz. 
Paz. Foi em paz que me senti enquanto caminhava os primeiros metros nesta terra. E seguia de sorriso no rosto, confusa pelo regresso tão sofrido e, afinal, tão arrebatador.
Continuei a suspirar e a tentar equilibrar em mim esse entusiasmo da chegada com a angústia da distância que já se fazia sentir.
Ainda estou a reaprender a respirar. Literal e metafóricamente. Depois de oito semanas fora, demora até que os pulmões se adaptem à humidade que bebem. Depois de oito semanas fora, demora até que o coração fique leve e se passeie nessa ponte entre a Guiné-Bissau e Portugal.

Suspiro mais uma vez e confio à noite esta dualidade de sentires. Demoro-me nesta alegria boa que não sei explicar. Descanso o longe nesse espaço sagrado em mim.

Avançar

Avançar. Um pé à frente do outro. Sem pressa. Sem vontade, às vezes. Sem saber para onde ir, outras vezes.
Avançar. Não ficar parado. Caminhar. Devagar, que seja. Rápido, se assim for.
Avançar. De olhos no chão, desinteressados. Ou a olhar à volta, deslumbrados. Olhos fixos no horizonte, na certeza da direção, na miragem da meta. Qualquer que seja o teu olhar, avança.
Avança. Como puderes. Mas avança. Não te detenhas parado em ti próprio.
Avança. Porque só avançando se chega mais longe. Porque só avançando poderás sair de onde estás. Porque só avançando crias novas realidades. Porque só avançando dás novas oportunidades a ti próprio e à vida. Só avançando.
Se tiveres que chorar, fá-lo enquanto caminhas. A brisa da estrada secará as tuas lágrimas e ainda há tantas curvas a esconder surpresas e paisagens. Ainda há tantas pontes a ligar a outros caminhos. Ainda há tantas planícies para descansar. Tantos lagos de água fresca. Ainda há tantas praias para ver o sol adormecer. Tantas colinas para esperar um novo dia. Ainda há tanto, tanto, tanto para te encher o peito de tanto, tanto, tanto.
Não traves o escuro à volta, se ele existe. Aceita-o na noite que cai e descansa as energias para o novo dia. Há sempre um novo dia. E ainda há tantos dias!
Avança! Há muito à tua espera. Então vai. Confia. Segue. E aceita. Aceita que às vezes estás triste, que não te apetece, que estás cansado. Aceita e avança. Cada passo que dás estás mais perto. A cada passo que dás és mais tu, mais inteiro, mais realizado.
Aceita. Confia. Avança. Deixa o teu crescimento fazer-se sereno, deixa as aprendizagens rasgarem em ti novos rumos de alegrias. Deixa nascerem esses dias em que o sol te cega de entusiasmo, em que os risos gritam em ti a vida a acontecer, só porque não desististe de avançar.

 

Djumbai

Djumbai é uma palavra do crioulo da Guiné-Bissau utilizada para descrever convívio, encontro de pessoas, troca de ideias e pensamentos, conversas. É um "estar" inteiro , estar com, estar ali, estar com as pessoas, nelas, e deixar que elas estejam em nós. Ouvir e falar. Estar em silêncio também. É estar. Esse estar onde somos nos outros e os outros são em nós. Sem a poesia da expressão; apenas a naturalidade da companhia dos que comungam num mesmo espaço do mundo
Nenhum guineense te explicará este termo com tantas palavras. Porque foi assim que cresceram: em djumbais de alpendres onde todas as casas são tuas, em sombras de cajueiros que amenizam o calor tórrido. É onde a vida acontece e se aprende, sem saberes que a vida está a acontecer, sem consciência dos ensinamentos. É permanecer nos momentos e partilhá-los.


Resolvi importar o conceito, porque é um conceito que importa. Importa conhecer. Importa aprender. Estar com os outros sem esforço e sem cerimónias. Não trouxe a sombra do cajueiro nem os alpendres que circundam as casas nas tabancas da Guiné-Bissau. Trouxe a vontade de estar.

Depois de tanto tempo longe, as férias estão a ser passadas em djumbais. E sempre que vem a tão repetida pergunta "O que tens feito?", djumbai é a resposta, ainda que use palavras mais completas para o explicar a quem não conhece o termo. Não tenho feito nada de especial e tenho feito o que há de mais especial: estar com as pessoas. Era o que mais tinha vontade de fazer antes de vir, é o que me continua a apetecer fazer: estar. Porque bem mais que os luxos e os confortos, são elas que me fazem falta quando estou longe. Não apenas a presença, mas a certeza dessa proximidade à distância de um telefonema ou 15 minutos de carro.
Djumbai. Foi este o nome que dei a um convívio de amigos que fiz há dias cá em casa. (Casa! Outra palavra que me enche o coração!) E acho que nenhum deles percebeu como aquela deliciosa banalidade de uma noite de Verão entre amigos na minha casa me fez sentir tão preenchida. Porque estar com alguém nunca é banal, mesmo que as conversas sejam corriqueiras, mesmo que se repitam os lugares, mesmo que seja sair para dançar. O encontro com o outro - quem quer que ele seja - nunca é banal. É sempre uma novidade e uma aventura, uma descoberta e uma confirmação. São essas partes de nós que nos dão corpo e é dessa soma de instantes que a vida resulta.
 



 

 
 

 

Entre a Casa e o Mundo

Os últimos dias têm sido passados a saborear a banalidade deliciosa de "estar em casa", de participar das rotinas, de fingir a normalidade do contexto familiar onde sou ausente o resto do ano.
 
A viagem foi feita em compassos de magia, em tempos que o relógio não mede, nesse céu que me guarda inteira no mundo.
E aterrei com o coração ainda a voar, à espera de olhar e abraçar. E foi tão bom! Mas o mais incrível é que, desde a primeira manhã que acordei em casa, volta a sensação de nunca ter saído.
Como os momentos com os amigos que tenho estado a rever: parece sempre que tínhamos estado juntos no dia anterior. Depois de abraços apertados e de sorrisos abertos pela alegria do reencontro, é como se existisse uma capacidade de actualização imediata que permite a cumplicidade de quem não precisa dizer nada, mas insiste em dizer tudo em conversas prolongadas.
 
Deslumbrada e inquieta. É assim que me sinto. A saborear pequenos luxos e confortos que voltei a experimentar e - a melhor parte! - a desfrutar da presença e da proximidade das pessoas que me enchem o coração. Ainda não abracei todas. Mas o amor não rouba tempo ao tempo; antes estende as horas, sem pressas nem horários.
Mas é este amor, este aconchego, que me traz a inquietude. Porque me sei a partir novamente em Setembro. E, ainda que sendo o meu caminho, parece - às vezes - não fazer sentido. Como se o caminho não fosse a estrada em si, mas as pessoas. Todas as pessoas, de todos os caminhos.
 
"Desta vez ficas, certo?" 
Passou pouco mais de uma semana e já tive que responder a esta questão demasiadas vezes. E sempre na resposta o misto estranho de angústia por saber que vou voltar a partir e de paz por esse outro cantinho de mundo já tão meu.
 
Querer mundo e querer casa ao mesmo tempo. Ainda não sei como. Mas sei que é esta a minha procura. Porque é isto que o meu coração me pede. Num pedido sem palavras, sem gritos, apenas a certeza de querer ficar sem nunca deixar de sair para o mundo. Um dia vou encontrar um equilíbrio. Um dia vou construir uma ponte.
Porque quando estou em casa, preciso do mundo. Mas quando saio para o mundo, preciso de casa. E é a casa a minha essência. É a casa que me permite sair para o mundo. Se não fosse esta casa, não tinha de onde sair. Não tinha para onde voltar. Mas este ninho merece-me mais do que a certeza de lhe pertencer. Merece-me inteira, ainda que aceite os meus pedaços incompletos.
 
E eu não sei mais o que dizer, o que pensar, nem o que sentir. Porque me perco nestas estradas que se cruzam, mas não chegam a ser uma só. Porque me perco em expedições de novos atalhos. Porque insisto em querer tudo.
Mas bem, é agora altura de me parar por este cantinho. E há ainda tanto para me demorar! O coração encontrará a sua paz ou aprenderá a viver nesse sobressalto partilhado.
Agora é tempo de ficar.

Encontro de amor

Sou absoluta e profundamente grata pelas minhas pessoas. Pela minha família. Pelos meus amigos. Tenho mesmo sorte pelas pessoas com quem partilho os dias aqui e imensa sorte pelas pessoas que me fazem falta porque estão longe.
Sinto-me imensuravelmente grata por estas pessoas que me tornam maior e mais bonita, que me fazem sentir protegida e amada, que se interessam e me cuidam. Sou uma miúda de sorte, todos os dias me lembro disso!

E a única coisa má de gostar taaaanto de algumas pessoas e de as sentirmos gostarem-nos igual, são mesmo as saudades, os dias que se somam sem momentos banais de partilhas e encontros.

É hoje. Naquilo que mais se aproxima de um mundo encantado de fantasia: voar. Voar de um continente para o outro. Entrar num avião depois de passos em Bissau e sair do avião a calcar Lisboa. Depois o Porto. Depois a minha casa. É hoje.

Se fechar os olhos, já me imagino a rasgar o céu, nesses instantes em que não estamos em lugar nenhum, mas todos os lugares cabem em nós. Porque estamos nesse céu que guarda o mundo, todos os mundos e todas as pessoas. Sinto-me sempre em paz dentro de um avião. Como se tudo fosse possível. Estou a voar! E porque sempre o destino nos acolhe o coração mesmo antes de aterrar.

Mas o destino de hoje é e será sempre o mais importante: a minha casa, o meu ninho, o meu pilar, as pessoas que mais amo e que mais que amam. A incondicionalidade deste amor é o destino mais certo. E é para ele que hoje voo.

Borboletas no estômago, coração apertado - ou solto, nem percebo bem -, nervoso miudinho e uma ansiedade enorme. Confessava-me assim, há dias, a uma amiga e disse-lhe:
- Parece que vou ter um encontro de amor!
- E vais!, disse-me ela.

E vou. O maior dos amores. O mais bonito. O mais seguro. O mais inteiro. Sinto-me absolutamente privilegiada por poder vivê-lo desta forma, por poder amar tanto as pessoas cuja presença é, normalmente, transversal aos dias, e pela saudade me obrigar a demorar neste bem-querer .
É uma sensação de festa dentro de mim. É hoje!