Mais. Melhor.


É tanto o que quero ser e tão pouco o que, de facto, faz parte de mim na plenitude inquestionável de quem é. Mas é para lá que caminho. Digo eu. Escudo-me na afirmação do passos que dou pela estrada que é a certa, desvalorizando, ainda que inconscientemente, a lentidão dos passos, as hesitações, o tempo passado a colher flores, a olhar o céu, adiando, de forma consciente, mesmo que não propositada, a caminhada efectiva, a intencionalidade dos ideais cuja utopia quero despir.
Falta-me a pureza das intenções e a persistência das acções. Falta-me a humildade e o desprendimento necessários para não me regozijar com os passos que se seguiram firmes na etapa anterior… Falta-me olhar em frente e ser mais forte que as distracções. Mais forte que eu. O eu que ainda não é do tamanho que quero.
Crescer mais, aprender mais, amar mais, dar mais. Crescer melhor, aprender melhor, amar melhor, dar melhor. Ambições sempre insatisfeitas, esforço sempre insuficiente.
 
E, ainda assim, alegria da vida e de mim, a querer mais, sempre mais, mas inteira de paz.
 
 

Graças

Na vida acontecem-nos imensas coisas chatas, irritantes, que nos tiram do sério. É demasiado fácil estar de mau humor: basta aceitar os estímulos gratuitamente desagradáveis. 
Na vida, acontecem-nos imensas coisas maravilhosas, divertidas, coisas que nos encantam e alegram. É demasiado fácil estar feliz: basta aceitar os estímulos de belezas e bondades que nos enchem os dias.
Se pensarmos de forma objectiva, veremos que são muito mais as graças que recebemos, não tivéssemos este instinto de tomar muitas delas como garantidas. São incontestavelmente maiores as bênçãos que respiramos distraídos do que os problemas que nos incomodam. Às vezes, é bom demorarmo-nos nas graças com atenção, pelo menos para colmatar um pouco do tempo que gastamos a dramatizar de cara fechada e tom de voz alterado. Não, não tenho a pretensão de estar sempre feliz e tranquila. Isso também não é sensato. E porque há problemas bem graves. E porque há problemas bem simples. E porque somos gente assim às vezes, descontentes, insatisfeitos. E porque fazer tempestades em copos de água é um passatempo humano. E porque sim; às vezes é mesmo só porque sim. Que seja. Mas que depois nos demoremos intencionalmente nessas graças invisíveis. E que nos possamos demorar ainda mais nas graças que surpreendem os nossos dias.
Na sexta-feira roubaram-me a carteira: documentos, dinheiro, telemóvel. Lá me esforcei para não dramatizar muito, e neste momento o que me estava a incomodar era o rol de documentos a tratar: burocracia e mais dinheiro! E agora, aqui tranquila numa tarde de feriado relaxada no bar de um hotel de Bissau, abordam-me para dizer que encontraram os meus documentos numa qualquer rua desta cidade.
Prometo passar mais tempo feliz por este recuperar dos documentos, do que passei a reclamar pelo roubo.

Semear estrelas

















Semear estrelas. Soa tão bem. Tão bonito!
Às vezes queria só morar dentro duma poesia, dum quadro de cores vivas. Coisas bonitas, sem sentido, mas que nos fazem sentir. Sentir sem nome. Mas sentir bom.
Às vezes queria só semear estrelas, pintar sorrisos, fazer magia. Todos os clichés lamechas.
Queria só pintar tudo de cor-de-rosa, decorar as paredes com flores, desenhar corações por todo lado. Às vezes queria só ver fadas e o Winnie the Pooh.
Hmmm… Às vezes queria só descer no escorrega e correr para os baloiços e acreditar que voo.
Às vezes apetece-me só escrever assim, à toa. De olhos fechados, sorriso rasgado e coração de criança.
Sem construir nada. Só fantasia bobinha. Tipo intervalo, recreio para correr pelos caminhos que os adultos não pisam.

Às vezes, só às vezes…


São Francisco da Floresta


fica no interior profundo da Guiné-Bissau. Um ''longe de tudo'' que se acentua pela inexistência de estradas, apenas caminhos de terra que rasgam o mato e unem tabancas.
A escola fica numa espécie de “meio do nada”, por entre os terrenos de cajueiros que se enchem de pessoas em Abril e Maio.
As crianças chegam de longe, poucas de perto. Poucos sítios são perto. Pelo caminho aquecem e esquecem o frio das manhãs de Janeiro. Dentro da sala, os corpos vão arrefecendo e escondem os braços dentro da t-shirt. Os professores vêm cumprimentar, as crianças arregalam os olhos e disfarçam os sorrisos envergonhados.
Depois do trabalho na escola, a hospitalidade de sempre na casa que foi em tempo uma missão católica. Há algumas décadas atrás, um homem italiano decidiu ficar. Construiu boa casa, fábrica de castanha de caju; acolheu crianças, misturou-se com a comunidade. Hoje, a sua casa e a fábrica pertencem à diocese e são geridas pela família que trabalhava com ele. Muitos italianos apoiam a comunidade e esta família. Voluntários vêm todos os anos ajudar em pequenos trabalhos e amigos e doadores enviam presentes e produtos.
À noite, as crianças da família reúnem-se à volta de um leitor de DVD, os adultos atentos ao filme na televisão que enche o pátio de cores e sons nada banais por aqui. Um pouco da Europa dentro daqueles muros. Nos equipamentos, nos nomes das crianças (Raquel, Diego, Catarina, Francesco), na mesa posta que nos aguarda à hora de jantar.
É estranha esta mistura. Onde tudo é tão igual ao resto da tabanca, mas em algumas coisas tão diferente.
Sábado e Domingo decorre uma espécie de encontro para debater as práticas de casamento forçado, particularmente de meninas adolescentes com homens mais velhos.
Uma intervenção, e outra, e outra… o compasso lento da tradução crioulo-dialecto / dialecto-crioulo que reforça cada palavra.
A par da palestra, ouvem-se perto os gritos do porco que será o almoço de todos.
- Eu queria estudar, mas o meu pai não deixou. “Não podemos comer folhas de escola.” , dizia. Mas eu acho que as folhas da escola são mais importantes que comida.
- Agora nós já percebemos que o mundo de hoje não pode ser comparado ao mundo do passado. (A propósito das tradições e das duras condições de vida.)
Já não se ouvem os gritos do porco.
- Nós, no nosso tempo, não tivemos possibilidade de ir à escola. Para nosso grande contentamento, hoje os nossos filhos vão à escola. Se chega uma carta, eu não posso ler, mas os meus filhos já podem e lêem para mim.
- Eu não sei nada. O meu filho é que vai ser a minha sabedoria.
À noite vai ser projectado um filme. Dois paus levantados seguram um pau na horizontal onde é estendido um lençol velho. As pessoas esperam, pacientes, ansiosas. Um filme! E grande assim...! Os corpos estão encolhidos com o frio das noites de Janeiro (17 graus, pouca roupa), mas os olhos estão abertos e atentos. Ainda demora. É preciso resolver toda a questão logística do gerador, das colunas e do projector.
As colunas não funcionam. Mas o silêncio não cala as imagens.
Primeiros dez minutos de filme e o computador encrava. Ninguém reclama. Todos continuam em silêncio, na tranquilidade de quem sabe esperar.
E fica assim, dias depois, esta pequena ode às coisas bonitas que são ditas nas entrelinhas, nos gestos, na firmeza das palavras, na humildade da escuta, na gratidão plena de sentir que comove e contagia.

Malaquias

O Malaquias é um menino pequenino. Tem 6 anos. Nunca o vi brincar. Vem com a mãe, vai para a escola e depois volta. Toma banho no tanque e ajuda a mãe em pequenas tarefas.

- Helena, o Malaquias é muito pequenino. É criança, tem que brincar.
A Helena ri. O Malaquias continua com o seu olhar sério e quieto, no silêncio a que nos habituou. Nunca o vi brincar. Almoça com a mãe e depois fica num canto, revirando pequenos papéis que encontra pela casa. Dorme a sesta num sofá improvisado com colchões no corredor. Nós falamos, puxamos conversa, mas há apenas silêncio.

Os dias passam e um dia há um sorriso e outros que se vão repetindo. Depois palavras. A voz envergonhada, a medo, que responde em frases curtas. A cabeça que acena para dizer sim ou não.

- Ele não fala, é maluco.
- Helena, não digas isso. O Malaquias não é maluco!
- Aquele que não fala, é maluco...! , responde.
Na verdade, não percebemos bem o que se passa com o Malaquias. Mesmo com a mãe não fala muito. Só o indispensável.

Quando fico em casa um pouco a seguir ao almoço, vem até ao meu quarto e fica quieto e calado, esperando que eu faça algo, diga algo. E quase sempre continua em silêncio, com o olhar que pede desculpa pela sua timidez. E é assim que as suas poucas palavras e os seus sorrisos distraídos são surpresas boas quando acontecem.

De prenda de Natal, trouxe carrinhos de brincar e chupa-chupas. Depois de almoço, o alpendre é palco da coisa mais banal do mundo que me comoveu: sentado no chão, de chupa-chupa na boca, o Malaquias brinca com os carrinhos. E, de repente, é só uma criança como outra qualquer, tranquilo a brincar. Brincar. O Malaquias a brincar. Que imagem bonita!

- Malaquias, vem cá ver outra coisa que te trouxe.

Ele vem, o olhar atento, mas sempre em silêncio. São jogos didáticos oferecidos por uma amiga que nem o conhece, mas se partilhou com bondade genuína. Vão ser maravilhosos para ajudá-lo a superar as dificuldades que vem sentindo na escola.
Pensei que ia querer voltar rapidamente para os carrinhos e já me preparava para mostrar os jogos com entusiasmo exagerado. Jogamos um a um. Cada aprendizagem reconhecida e valorizada.

- Helena, vem ver como o Malaquias é inteligente!
A mãe orgulhosa, ele concentrado em montar o puzzle, em juntar as peças do dominó, em encaixar as letras e os números no sítio certo. E eu encantada.
Aos poucos, a voz do Malaquias tornava-se mais presente. Sempre baixinho e envergonhado, mas lá ia dizendo o nome dos números e das letras. A seguir, hora de eu voltar ao trabalho, entregou-se ao livro de pintar e pintou pintou pintou... Antes de se ir embora com a mãe, foi com ela até ao meu escritório com um dos carrinhos na mão e pediu:
- Acende.
- Não dá, Malaquias. É mesmo assim.
Ele lá foi, conformado.

Hoje, à hora de almoço, já me esperava com os jogos na mão. E brincou, e aprendeu e sorriu.


O que nos aperta o coração?


 
Coração apertado. Sorriso sincero, mas não tão inteiro assim. Paz algo forçada, porque a angústia chateia. Certeza das pessoas, das minhas pessoas. Certeza delas em mim. De mim nelas. Certeza de, no próximo encontro, no próximo abraço, nos próximos olhares cruzados, nos sorrisos partilhados, tudo se manter como se a presença não tivesse sido nunca interrompida.
É essa a magia dos laços. Esses invisíveis em que fio nenhum segura o afecto e o cuidar do outro.
Então o que me faz doer o coração? Se os trago em mim, se vos trago em mim e se me sei convosco?
O mais engraçado, ainda que não tenha piada nenhuma, é saber que se estivesse aí, me apertaria o coração as ausências daqui.
Sempre esta impermanência de lugares e pessoas. Sempre esta exigência involuntária de tudo e todos. Sempre esta insatisfação de pessoas e lugares. Sempre a querer mais. Sempre a deixar o coração doer com o menos. Que afinal é o maior possível. Ou o maior impossível. Essa coisa das pessoas que amamos, que nos amam. Dos lugares onde nos partilhamos, das diferentes cores que pintam o mundo e de querermos sempre que todas se misturem nos nossos dias.
Mas o que me faz doer o coração se há tanta vida para viver aqui? Tantas pessoas a cuidar, tantas que me cuidam? Se há pessoas que acrescentam vida aos meus dias, todos os dias? Se há pessoas com quem partilho, cresco e aprendo tanto? Se há pessoas que enchem os instantes de eternidades repetidas?
Talvez porque casa é casa. E as nossas pessoas serão sempre as nossas pessoas. E sempre será delas o nosso coração inteiro. Porque delas partimos e a elas sempre voltamos, por mais abençoado que seja o nosso caminho de amigos gigantes de belezas. E porque em cada partida tem que haver o momento de dor, para lembrá-los, talvez para dar verdade e corpo aos momentos em que as nossas vidas se fundem numa só.

E aos poucos o coração deixará de apertar e voltarei a estar inteira por aqui.
Mas antes é preciso sentir e perceber. Integrar. E seguir.