fica no interior profundo da Guiné-Bissau. Um
''longe de tudo'' que se acentua pela inexistência de estradas, apenas caminhos
de terra que rasgam o mato e unem tabancas.
A escola fica numa espécie de “meio do nada”, por
entre os terrenos de cajueiros que se enchem de pessoas em Abril e Maio.
As crianças chegam de longe, poucas de perto. Poucos sítios
são perto. Pelo caminho aquecem e esquecem o frio das manhãs de Janeiro. Dentro
da sala, os corpos vão arrefecendo e escondem os braços dentro da t-shirt. Os
professores vêm cumprimentar, as crianças arregalam os olhos e disfarçam os
sorrisos envergonhados.
Depois do trabalho na escola, a hospitalidade de
sempre na casa que foi em tempo uma missão católica. Há algumas décadas atrás,
um homem italiano decidiu ficar. Construiu boa casa, fábrica de castanha de
caju; acolheu crianças, misturou-se com a comunidade. Hoje, a sua casa e a
fábrica pertencem à diocese e são geridas pela família que trabalhava com ele.
Muitos italianos apoiam a comunidade e esta família. Voluntários vêm todos os
anos ajudar em pequenos trabalhos e amigos e doadores enviam presentes e
produtos.
À noite, as crianças da família reúnem-se à volta
de um leitor de DVD, os adultos atentos ao filme na televisão que enche o pátio
de cores e sons nada banais por aqui. Um pouco da Europa dentro daqueles muros.
Nos equipamentos, nos nomes das crianças (Raquel, Diego, Catarina, Francesco),
na mesa posta que nos aguarda à hora de jantar.
É estranha esta mistura. Onde tudo é tão igual ao
resto da tabanca, mas em algumas coisas tão diferente.
Sábado e Domingo decorre uma espécie de encontro para
debater as práticas de casamento forçado, particularmente de meninas
adolescentes com homens mais velhos.
Uma intervenção, e outra, e outra… o compasso lento
da tradução crioulo-dialecto / dialecto-crioulo que reforça cada palavra.
A par da palestra, ouvem-se perto os gritos do
porco que será o almoço de todos.
- Eu queria estudar, mas o meu pai não deixou. “Não
podemos comer folhas de escola.” , dizia. Mas eu acho que as folhas da escola
são mais importantes que comida.
- Agora nós já percebemos que o mundo de hoje não
pode ser comparado ao mundo do passado. (A propósito das tradições e das duras
condições de vida.)
Já não se ouvem os gritos do porco.
- Nós, no nosso tempo, não tivemos possibilidade de
ir à escola. Para nosso grande contentamento, hoje os nossos filhos vão à
escola. Se chega uma carta, eu não posso ler, mas os meus filhos já podem e
lêem para mim.
- Eu não sei nada. O meu filho é que vai ser a
minha sabedoria.
À noite vai ser projectado um filme. Dois paus
levantados seguram um pau na horizontal onde é estendido um lençol velho. As
pessoas esperam, pacientes, ansiosas. Um filme! E grande assim...! Os corpos
estão encolhidos com o frio das noites de Janeiro (17 graus, pouca roupa), mas
os olhos estão abertos e atentos. Ainda demora. É preciso resolver toda a
questão logística do gerador, das colunas e do projector.
As colunas não funcionam. Mas o silêncio não cala
as imagens.
Primeiros dez minutos de filme e o computador
encrava. Ninguém reclama. Todos continuam em silêncio, na tranquilidade de quem
sabe esperar.
E fica assim, dias depois, esta pequena ode às coisas bonitas que
são ditas nas entrelinhas, nos gestos, na firmeza das palavras, na humildade da
escuta, na gratidão plena de sentir que comove e contagia.