Resiliência

Estamos habituados a desculpar as amarguras das pessoas pelo que sofreram ao longo da vida. Fatalismos inevitáveis, caminhos que se fecham em si. O lugar onde nasceram, a família onde calharam, a escola que frequentaram. Não quero contestar o papel que isso possa ter - e tem, de facto - no desenrolar de experiências e aprendizagens, logo eu que sou assistente social.
O que quero é demorar-me nas pessoas que vão além do que é esperado, muito além. Pessoas que usaram as dificuldades como um ginásio que as fez seguirem mais fortes pela vida, com tanto para nos ensinarem, com tanto para devolverem a um mundo que lhes ficará sempre em dívida.
 
Resiliência.
É um conceito que a psicologia foi roubar à física, para explicar as pessoas que apresentam uma propriedade semelhante àqueles materiais que voltam ao seu estado normal depois de terem sofrido uma pressão. Mas, quando falo destas pessoas, que deixe claro que elas não voltam apenas ao seu estado normal (o que é o estado normal duma pessoa? A física não definiu, a psicologia também não…); elas superam-se repetidamente, como se continuassem a crescer, mesmo depois de adultas, numa altura que não se mede em centímetros. Elas transpõem obstáculos, elas rasgam caminhos alternativos para caminharem firme e de passo rápido. E, o mais surpreendente, continuam a ter a capacidade de sentir compaixão pelos problemas dos outros, banais que sejam; continuam a exigir mais de si, e a entregar-se, numa medida sempre maior, a inspirar vontades e atitudes.
 
E eu, que me alimento das belezas que moram dentro das pessoas, fico repleta com estas duas que vos apresento agora:
 
Ela quase morreu. Mas está viva. Às vezes fica desanimada, porque isto de querer mudar o mundo é muito cansativo. E frustrante. Querer dar muito à vida pode ser difícil. Como se fosse mais fácil receber da vida sem pedir nada e sem retribuir em excesso. É teimosa como só ela! Talvez por isso mesmo tenha chegado onde ninguém a incentivou a ir. E teimosa rasgou estatísticas e probabilidades; a vida dela não é um número. E logo ela, que gosta mesmo é de contrariar, lá se ia encaixar em teorias e gráficos? Nunca! Quanto mais diziam que ela não ia conseguir, mais vontade ela tinha de lhes provar o contrário. Faz o que tem que fazer e o que não tem que fazer. Faz o que é preciso, portanto. Que este mundo tem que mudar e ela não vai dar descanso, nem a si, nem aos outros!
 
Ela foi sempre uma lutadora. Jeitinho de menina frágil, mas de caminho duro. Gestos doces e sorriso aberto, guardam dias difíceis daqueles que deixam mossa. Mas ela não gosta de guardar nada: é assim impulsiva, vive o momento e na mala guarda vestidos e brincos para se pôr bonita, livros para lhe encherem a alma; o resto fica onde ficou. Gosta de poemas, mas a vida dela é literatura em prosa. Daqueles livros que dá gosto ler, que têm tanto para nos contar e surpreender. Daqueles livros imensos de páginas que não conseguimos pousar. Daqueles livros cuja leitura muda a nossa vida. Para sempre. Para melhor.
 
E por isso vale a pena lembrar o sofrimento. Que deixa de o ser quando é aprendido: como se aprender a sofrer pudesse erradicar o próprio sofrimento. Porque deixa de ser o peso inútil que magoa, para ser a força que transforma e impele. E faz assim pessoas gigantes de encantos, que fazem do mundo um lugar mais bonito, mais seguro.
É bom partilhar o mundo com pessoas assim!

Apetece-me...


Hoje apetece-me gostar de ti. E apetece-me dizer-te que gosto de ti.
Hoje apetece-me gostar de ti. Gostar muito. Gostar tanto. E demorar-me neste gostar. Nesta sensação boa do coração a voar e tu sem saberes, sem sonhares. 
Hoje apetece-me ficar encantada só pelo que tu és, ou pelo que imagino que sejas... Que importa?
Apetece-me gostar de ti e das coisas que gosto em ti. Só porque me apetece gostar de alguém e não sei de quem gostar. Quem melhor do que tu? Acho que ia gostar de gostar de ti.
Hoje apetece-me gostar de alguém como tu, cheio de mundo dentro do peito, cheio de vidas na alma... E ver as coisas como tu as vês, iluminadas por essas luzes que gritam nos teus olhos. Hoje apetece-me sentir de que é feito o teu sorriso e tocar a paz do teu coração. Ouvir as tuas palavras e lembrar as coisas que nunca tinha pensado. E ver em ti esse lugar que não vem no mapa. Esse sítio repleto de caminhos e gentes, de projectos e sonhos, de monumentos edificados em segredo, de construções que só o amor torna real.
Hoje apetece-me gostar de ti.
Porquê hoje?
Talvez a tranquilidade de Bafatá se imponha assim, nestes apetites despropositados. Talvez seja só a memória de um gostar e a vontade de o repetir. Talvez seja só um capricho de uma tarde quente de Domingo. Demasiado quente. Demasiado Domingo.
Talvez seja só isso mesmo. Talvez nem seja nada. Talvez seja tudo.

Mangas

Já as vemos crescerem nas árvores, meio envergonhas. Espreitamos e alegramo-nos quando começam a tomar forma. As crianças já vão arrancando uma ou outra, fingindo-lhes o sabor que ainda não têm. Mas nós, crescidos que somos, e que sabemos esperar, ou que não queremos menos que o seu sabor inteiro, aguardamos pacientes os dias que faltam, uma semana, duas.
Lembro-me do meu primeiro encontro com as mangas da Guiné-Bissau. Fim de Março. E as mangas de casca verde. Doces e frescas como só aqui. Gotas que caem pelos cantos do lábio, as mãos cor-de-laranja do sumo que não conseguimos beber, o caroço quase limado pelos dentes.
Lembro que depois veio o Golpe de Estado, trabalho parado, eminência sabe-se lá de quê, que o tempo era espremido a considerar e analisar, entre temer e confiar. E eram as mangas que nos forçavam intervalos das especulações, às quais voltavamos mais tarde, renovados, mais leves e confiantes.
Agora, enquanto lembramos, esperamos. Como quem sente já o paladar que a memória nos põe à mesa.
 
E porque as coisas não são só coisas, mas o que lhes associamos, o que lhes sentimos, lembro ainda outras mangas. Não tão saborosas, talvez. Depende do tipo de sabor que falamos. Estas são mangas de casca vermelha que o avô compra para mimar a neta que não está perto no resto do ano. Manga de casca vermelha que o avô apresenta, descascada e cortada, no fim da refeição. E a acompanhar, o sorriso gigante de quem é mais feliz a amar.
Sabem a carinho, estas mangas. Sabem a essa presença de Deus que os avós representam no mundo. Sabem às histórias repetidas que ouvimos sempre com a mesma atenção, quase antecipando as palavras, como quando ouvimos a nossa música preferida. Sabem a essa ternura que só dos avós nasce, que só neles vive, que só deles aprendemos.
E agora fiquei com vontade de comer essas mangas menos saborosas, mas frescas de intenção e doces de companhia. Para essas ainda faltam uns quatro meses. Mas até lá, no tempo que falta para abraçar o avô das mangas e os avós dos bolinhos de bacalhau com feijão frade, está a crescer nas árvores o fruto mais delicioso da Guiné-Bissau.
 
Nada na vida é apenas em si próprio. As mangas não são só as mangas. São a leveza que trazem aos dias, são o aconchego dos nossos. As coisas são esses significados que atribuímos, esses sentidos que experimentamos. Os lugares são o que fazemos neles. E as pessoas são o que é recebido no coração e partilhado a amar.

Cooperação


"Os que asseguram que é impossível, não deveriam interromper os que estão a tentar."

Igualdade? Justiça? Paz?
A verdade é que, no fundo, nem mesmo nós sabemos se é possível. Mas isto é segredo, não contem a ninguém. Não sabemos, mas não queremos aceitar que não o seja. E não nos obriguem a aceitá-lo. Também vocês não têm a certeza de que é impossível. Não sabemos. Ninguém sabe.
Então, fazemos assim, meio termo encontrado para ninguém se chatear: nós não vos obrigamos a lutar por algo em que não acreditam e vocês não nos obrigam a desistir de algo em que acreditamos. E continuamos todos amigos e com muito para falar, que o que não falta são temas de conversa, e há tanto em que concordamos, e tanto mais em que as nossas discordâncias nos fazem crescer.
Mas nisto não... Nisto são vocês a repetirem que os nossos esforços são inúteis, contraproducentes até. E nós, apesar de nos debatermos no conflito permanente entre a entrega e a frustração, entre preserverar e desisitir, queremos continuar. Se fosse para desistir, já o tínhamos feito há muito. São tantos os obstáculos a ultrapassar que, transpostos estes, não são os vossos argumentos insistentes que nos vão tirar do caminho.
Há quem ache que somos os maiores do mundo, há quem ache que somos uns aventureiros apenas, há quem ache que somos sonhadores inconsequentes. Podemos apenas ser? Podemos apenas ser pessoas como outras quaisquer? Com uma profissão qualquer? Podem não se demorar em nós só para dizerem que o que fazemos é inútil? Podem parar de tentar convencer-nos que é impossível? Se não ajudam, pelo menos não atrapalhem. Se não constroem, pelo menos não destruam.
Deixem-nos encher os dias de poesia, de clichés até. Deixem-nos acreditar, deixem-nos trabalhar. Não precisam elogiar. Prefiro até que não o façam. Mas deixem-nos descansar a frustração nos exemplos que nos inspiram a continuar. Deixem as convicções e os ideais seguirem sem serem constantemente atacados.
E não se ofendam com o que digo. Não o digo apenas a vocês, mas também a mim. E uso-vos, a vocês sem nomes e sem caras, de muitos nomes e muitas caras, para defender aquilo em que acredito. Porque às vezes, quase precisamos que nos contestem para que, num impulso de defesa, aumentemos a confiança em nós próprios.
Eu, confesso, também queria acreditar, ter a certeza de que era impossível. Ai, ia ter tão mais com que me entreter! Mas não... Não consigo, não quero, ainda, não já, desistir. Preciso tentar.
Quase como os adolescentes que vemos a descobrirem o mundo e a vida. Não vamos sentar o adolescente de 15 anos, olhá-lo nos olhos e dizer-lhe: "Eu sei que estás muito apaixonado, mas olha que o mais provável é que isso não dure tanto quanto pensas e que venhas a sofrer horrores com o fim do teu primeiro amor! Mais vale termirares já essa relação." Não fazemos isso. Primeiro, porque seria demasiado cru, demasiado duro; são aprendizagens da vida que ele tem que fazer, que nós já fizemos. E, segundo, porque não temos a certeza de que não será, de facto, aquele amor a acompanhá-lo até ao fim dos seus dias. E a vida não é feita de probabilidades.
Então sim, talvez seja nesse aspecto ainda uma adolescente a descobrir o mundo. Mas, se desistir, que seja porque tentei tudo o que tinha para tentar, que dei tudo que tinha para dar. E ainda assim, esperarei, no segredo do meu coração, que um outro alguém venha a tornar possível o impossível, numa das suas muitas tentativas.
Nas últimas semanas tenho estado a estudar um pouco algumas questões da pobreza no mundo, através de uma formação à distância. E não, não tive, não tenho, nem me parece que venha a ter, respostas formidáveis e novos caminhos nunca antes pensados. Mas colecciono vontades e inspirações, novas perspectivas e novas ideias, partilhadas por pessoas que têm estudado muito tudo isto, e continuam sem certezas. Ninguém consegue provar que é possível. Ninguém consegue provar que é impossível.
Mas estas pessoas continuam a estudar e a procurar porque acreditam. E eu quero acreditar com elas.
"I believe we can.
And I hope we will."
Esther Duflo

As coisas que nunca disse

Em tempos em que sigo profundamente apaixonada pela vida mas por ninguém em particular, Mia Couto tem a capacidade de me fazer suspirar encantada nas leituras que desenham vida nas palavras, que inventam significados nunca antes pensados, que casam sentidos que dão novos sentidos. Custa-me parar de o ler. Como menininha enamorada, volto à leitura sempre com a certeza de que o meu mundo ficará mais bonito no fim de cada página. Fala de tudo e de coisa nenhuma e, quase sem contar, aparecem frases como esta, que nos devolvem explicações de coisas que nunca nem tínhamos tentado perceber:
"Ele há dessas coisas tão subtis, incapazes mesmo de existir.
Como essas estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido."
E fico a pensar nas estrelas. Essas explosões imensas de luz que, de tanto se demorarem na viagem dos céus, não podem nunca retribuir os olhares de contemplação.
Às vezes temos mania de estrela, sensação de eternidade, e adiámos numa viagem imaginada esse brilho que vive em nós, porque não sabemos se outras luzes o irão fazer passar despercebido, ignorado, e é mais fácil guardá-lo protegido de olhares que não o nosso. E é um brilho que não brilha. Escondido na sua vergonha, no medo de não ter o que iluminar.
Há coisas que não existem porque não são ditas, não são partilhadas, e é então como se elas nem nunca existissem. Mas delas sempre fica um brilho disfarçado. Uma intensidade densa de sentir guardada no silêncio do coração.