Dia de África

Hoje é dia de África.
É dia da terra vermelha, do calor.
É dia do princípio do mundo, da génese da humanidade.
Hoje é dia da alegria, dos sorrisos, do acolhimento.
É dia da música e da dança.
Hoje é dia do pôr-do-sol gigante de laranja e do céu inacreditavelmente estrelado.
Hoje é dia da paz que vive dentro das pessoas.
É dia dos banhos de chuva e dos banhos de caneco.
Hoje é o dia das crianças que o são apenas no sorriso envergonhado.
É dia do amor que se descobre em surpresas, do afecto que se esquece de ser.
Hoje é dia do cheiro que ninguém explica, partilhado apenas na cumplicidade de quem sabe.
Hoje é dia da água mais saborosa, porque mata a sede como em nenhum outro lugar é possível.
É dia do mistério místico desta ligação ancestral que todos sentem, deste viciar saudável de quem experimenta.
Hoje é dia das pessoas, da simplicidade, da essência.
E hoje é um dia. É só mais um dia.
Hoje não é dia de África.
Todos os dias são. E não há intervalos. Nem férias.
Todos os dias são dias de sobrevivência e de festa, as duas em simultâneo a maior parte das vezes.
Todos os dias são dias de cantar e dar graças, mesmo que não haja voz nem motivos para agradecer. E há sempre motivos para agradecer.
Hoje não é dia de África. Todos os dias são.
Sabe-o quem está cá. Sabe-o quem veio cá. Porque nunca mais se é a mesma pessoa. Há novas cores a brilhar nos nossos olhos. E não há um dia em que isto não se celebre ou se lamente (mais uma vez, quase sempre em simultâneo).
Quem veio a África e não voltou outra pessoa, não veio a África. E esta transformação acontece desde o primeiro instante, ainda que imperceptível talvez, por ter lugar no mais profundo de nós, onde nem sempre arriscamos mergulhar.
Hoje não é dia de África. Todos os dias são.

Poeira

Passamos a vida a arrumar, limpar e lavar. De manhã vestimos roupa lavada e limpa e é assim que ela chega a casa no final do dia. O contrário só acontece em episódios que fogem à nossa vontade: a nódoa que cai à hora de almoço, a poça de água que pisamos distraídos, algo contra o qual esbarramos...
E a paz de quem se suja despreocupado?
Isto podia ser uma campanha de marketing para um detergente, mas não. É publicidade à vida, à espontaneidade, à simplicidade. Esplendores tão fora de moda nos dias de hoje...
 
Depois desta última semana passada entre tabancas de cajus e mangas, o castanho dos pés trazia ainda poeira de longe. A roupa na mala vinha mais pesada do pó entranhado. As t-shirts mais claras chegaram docemente manchadas dos abraços de meninos sorridentes, de crianças repletas de energia boa de quem se sabe sujar e de barrigas cheias de manga que ainda sobra nas mãos lambuzadas.
Não me comecei a sujar assim à toa, não. Mas, de facto, era tanta poeira, que a dada altura me cansei de sacudir e ter cuidado e decidi deixar de me preocupar com o quão suja iria chegar ao final do dia. E é absolutamente incrível a paz plena que se sente da simplicidade que vivemos quando não estamos a pensar se nos vamos sujar ou não.
 
Às vezes é preciso fazer um intervalo das roupas limpas, e sentar na terra. E permitir que a terra se sente em nós. Resistir ao impulso de sacudir as calças a cada instante e deixar que vão ganhando nova cor, confiantes no simples processo da água e do sabão horas mais tarde.
Há já demasiadas coisas sérias e difíceis nos dias, para nos perdermos em preocupações com roupa suja, problemas que a água limpa sem esforço. De vez em quando, que tal sujarmo-nos?
Para um bom equilíbrio, temos sempre a velha máxima: "Nem sempre, nem nunca". Então, por favor, aí pelo meio, sentem-se no chão, encostem-se a uma árvore, pintem com as mãos. Sujem-se. Porque a poeira sai e vida fica.
 
De regresso, a abrir a mala de roupa suja, guardo só a memória entranhada das pessoas, do pó que a estrada levanta com os nossos passos, de sentar no chão na melhor companhia do mundo e rir já sem saber de quê, coração contente de vida.

Encontro perfeito

com a chuva.















Os últimos dias foram demorados pelo Sul profundo desta Guiné-Bissau. Escolas, crianças, professores, pais, comunidades. Muitas escolas, muitos quilómetros percorridos. Corpo cansado dos caminhos que nunca viram estrada, costas doridas de um todo-terreno experiente da Guiné e dos saltos constantes em intervalos de terra que se abrem pelo mato.
Dia 15 foi o dia oficial do início da época das chuvas, aqui já aguardada com alguma ansiedade depois de meio ano em que o sol não descansou de brilhar. Mas o dia chegou sem água a cair do céu. Só nuvens fortes, a avisar que já não falta muito. E eu já a sonhar com a paz contente de correr em poças de água enquanto as nuvens se desfazem sobre a terra.
Hoje, no caminho de regresso, absolutamente exausta de cinco dias de trabalho bom e intenso, cruzamo-nos com vestígios de uma chuva que já tinha caído e inaugurado o cheiro inconfundível da terra molhada. E eu vinha a saborear e a respirar a sensação boa dos dias terminados, repleta de vozes, olhares e sorrisos misturados com o novo tom cinzento dos dias, em que o sol se substitui pela luz das pessoas inexplicavelmente bonitas que preencheram esta semana.
Chegada a Bafatá, o aconchego bom de estar em casa. Chuva, nem perto. O céu azul, só algumas nuvens a brincar distraídas. E era hora de descanso. Luxo bom do corpo na cadeira, os pés a descansarem no beiral do alpendre, a internet a relembrar esse mundo grande de gente e de saudades. E vem assim de surpresa, como o final perfeito num descanso esperado, aquele vento forte que anuncia a chuva. Criança feliz em mim, não tenho tempo nem de pensar, corro a sentir o vento fresco que levanta a poeira que a chuva ainda não acalmou e fico sem saber se será desta que virá fazer lama. O vento acalma e parece que foi só de passagem. Mas não; já de regresso a casa, começam pequenas pingas. A primeira chuva de 2013. Ainda sem pensar muito, tenho apenas tempo para partilhar a alegria quase ridícula (quase?)  num instante impulsivo.
E depois? Ah! Depois foi só sentir a chuva! A água a cair. O banho inundado de luz, de renovação. A sede da terra que soltava o calor guardado nos últimos meses. E foi assim até as mãos ficarem enrugadas, como a criança que não quer sair da piscina numa tarde de Verão.
Começou a época das chuvas da Guiné-Bissau. O sol continuará a brilhar em intervalos de arco-íris. E eu continuarei a aprender e a viver a magia de cada instante.

Celebrar a vida

No fim de um caótico dia de aniversário, fica a sensação de plenitude de quem celebra cada instante. A diferença neste dia são os miminhos extra, a atenção redobrada, a presença dos outros que, perto ou longe, estão junto do coração.
Um dia espremido de trabalho traz o cansaço bom de quem é feliz mesmo sem sair do escritório, bastidor das tabancas desta Guiné-Bissau onde somos mais inteiros só por reconhecermos o essencial. E este cansaço traz a alegria inigualável do corpo que relaxa com a noite a cair. A voz dos amigos em casa, dos que brincam entre as ultimas tarefas do dia no escritório, é a certeza de pertença a um maior que disfarça a minha pequenez.
E sigo tranquila, na certeza de celebrações renovadas. Imensa de gratidão profunda pela minha família, pelos meus amigos. Repleta da inquietude boa de quem promete nunca se contentar e nunca aceitar menos que tudo. Bêbada de paz pela terra vermelha debaixo dos pés, pelo sol quente que é metáfora da luz que vemos brilhar nos outros e nos aquece como nenhuma chama poderá jamais fazer. Esse calor bom da vida, de viver.
Saibamos celebrar mais do que uma vez por ano. Saibamos celebrar a rotina sagrada de cada momento.

Barcos














Ele tem no olhar a inquietude bonita de quem não se sabe inquieto. No sorriso a serenidade ingénua de quem não sabe que a paz mora em si.
 
Sabes o que é um barco?
Acho que a pergunta foi feita meio à toa no meio da conversa. Claro que eu sei o que é um barco. Mas talvez seja melhor confirmar. Há coisas que nos parecem óbvias e não são, afinal, tão imediatas assim. Às vezes não sabemos mesmo. E não queremos perguntar. Ou achamos que não faz sentido. Ou temos medo da reposta.
Sabes o que é um barco?
Perguntas de respostas óbvias. Quando havia mais a perguntar, mas parecia não ser necessário. Quando há tanto que, de facto, eu não sei.
Mas sim, sei o que é um barco.
E demoro-me agora nessa imagem de um barco a rasgar o mar, debaixo do céu...
 
Ele tem um olhar de mar sereno. Ela gosta é de céu, voar, asas abertas ao vento, o divino escondido no azul.
O mar e o céu conhecem-se no azul partilhado. E tocam-se apenas nesse lugar roubado, o horizonte que vemos sem existir. Mas não se pertencem. E é preciso transformar o sentir, dar-lhe um novo sentido.
Como a pequena folhinha que nos pesa nas mãos: não conseguimos guardá-la; não conseguimos deitá-la fora. É preciso transformá-la. Fica assim neste barquinho de papel essa memória bonita de olhares de eternidade simples e profunda.
 
E porque um barco no cais dá sempre vontade de navegar, vê-lo partir é experimentar a saudade involuntária de quem sente mesmo quando finge não sentir. Permitir que parta, mais de nós próprios do que qualquer lugar; vê-lo perder-se nesse horizonte inventado, e mentir em nós um esquecimento forçado.
 
Porque afinal, foi só um instante de magia.

Mãe

Gastas todas as palavras para te dizer em mim, sem verbos novos que me expliquem em ti, entrego a profunda simplicidade do amor. Na eternidade de um sempre, és e serás o meu primeiro amor, de génese e criação, de essência e pilar. O teu amor. O nosso amor.
E fica em poucas letras reunidas, o foco nesta magia de viver que é estar junto mesmo tão longe, que é guardar-me no teu abraço ainda sem te tocar.
 
O mais a dizer é indizível. Mas tu sabes. Nós sabemos.
 
E assim, olhos fechados, na paz segura do coração, abraço-te, entrego-me e recebo-te, sorriso cúmplice, olhar companheiro. E estamos juntas. Mesmo.

Velhinhos

Morro de medo da morte. Não da minha, que do outro lado há coisas brutais e até gostava de ter umas conversinhas por lá. Dos outros. Dos que são a minha vida.
Não sei lidar com despedidas definitivas, com ausências irreversíveis. Não sei viver o "nunca mais". Sufoca-me. Tira-me o ar. Por mais que aprenda a eternidade.
Mas, se tem que ser, que seja o mais tarde possível.
O meu maior sonho é este: que as pessoas que amo morram velhinhas. E que eu me demore, todos os dias, em acções de graça pelas suas vidas, pela companhia, pela presença, perto ou longe.