Entre a Casa e o Mundo

Os últimos dias têm sido passados a saborear a banalidade deliciosa de "estar em casa", de participar das rotinas, de fingir a normalidade do contexto familiar onde sou ausente o resto do ano.
 
A viagem foi feita em compassos de magia, em tempos que o relógio não mede, nesse céu que me guarda inteira no mundo.
E aterrei com o coração ainda a voar, à espera de olhar e abraçar. E foi tão bom! Mas o mais incrível é que, desde a primeira manhã que acordei em casa, volta a sensação de nunca ter saído.
Como os momentos com os amigos que tenho estado a rever: parece sempre que tínhamos estado juntos no dia anterior. Depois de abraços apertados e de sorrisos abertos pela alegria do reencontro, é como se existisse uma capacidade de actualização imediata que permite a cumplicidade de quem não precisa dizer nada, mas insiste em dizer tudo em conversas prolongadas.
 
Deslumbrada e inquieta. É assim que me sinto. A saborear pequenos luxos e confortos que voltei a experimentar e - a melhor parte! - a desfrutar da presença e da proximidade das pessoas que me enchem o coração. Ainda não abracei todas. Mas o amor não rouba tempo ao tempo; antes estende as horas, sem pressas nem horários.
Mas é este amor, este aconchego, que me traz a inquietude. Porque me sei a partir novamente em Setembro. E, ainda que sendo o meu caminho, parece - às vezes - não fazer sentido. Como se o caminho não fosse a estrada em si, mas as pessoas. Todas as pessoas, de todos os caminhos.
 
"Desta vez ficas, certo?" 
Passou pouco mais de uma semana e já tive que responder a esta questão demasiadas vezes. E sempre na resposta o misto estranho de angústia por saber que vou voltar a partir e de paz por esse outro cantinho de mundo já tão meu.
 
Querer mundo e querer casa ao mesmo tempo. Ainda não sei como. Mas sei que é esta a minha procura. Porque é isto que o meu coração me pede. Num pedido sem palavras, sem gritos, apenas a certeza de querer ficar sem nunca deixar de sair para o mundo. Um dia vou encontrar um equilíbrio. Um dia vou construir uma ponte.
Porque quando estou em casa, preciso do mundo. Mas quando saio para o mundo, preciso de casa. E é a casa a minha essência. É a casa que me permite sair para o mundo. Se não fosse esta casa, não tinha de onde sair. Não tinha para onde voltar. Mas este ninho merece-me mais do que a certeza de lhe pertencer. Merece-me inteira, ainda que aceite os meus pedaços incompletos.
 
E eu não sei mais o que dizer, o que pensar, nem o que sentir. Porque me perco nestas estradas que se cruzam, mas não chegam a ser uma só. Porque me perco em expedições de novos atalhos. Porque insisto em querer tudo.
Mas bem, é agora altura de me parar por este cantinho. E há ainda tanto para me demorar! O coração encontrará a sua paz ou aprenderá a viver nesse sobressalto partilhado.
Agora é tempo de ficar.

Encontro de amor

Sou absoluta e profundamente grata pelas minhas pessoas. Pela minha família. Pelos meus amigos. Tenho mesmo sorte pelas pessoas com quem partilho os dias aqui e imensa sorte pelas pessoas que me fazem falta porque estão longe.
Sinto-me imensuravelmente grata por estas pessoas que me tornam maior e mais bonita, que me fazem sentir protegida e amada, que se interessam e me cuidam. Sou uma miúda de sorte, todos os dias me lembro disso!

E a única coisa má de gostar taaaanto de algumas pessoas e de as sentirmos gostarem-nos igual, são mesmo as saudades, os dias que se somam sem momentos banais de partilhas e encontros.

É hoje. Naquilo que mais se aproxima de um mundo encantado de fantasia: voar. Voar de um continente para o outro. Entrar num avião depois de passos em Bissau e sair do avião a calcar Lisboa. Depois o Porto. Depois a minha casa. É hoje.

Se fechar os olhos, já me imagino a rasgar o céu, nesses instantes em que não estamos em lugar nenhum, mas todos os lugares cabem em nós. Porque estamos nesse céu que guarda o mundo, todos os mundos e todas as pessoas. Sinto-me sempre em paz dentro de um avião. Como se tudo fosse possível. Estou a voar! E porque sempre o destino nos acolhe o coração mesmo antes de aterrar.

Mas o destino de hoje é e será sempre o mais importante: a minha casa, o meu ninho, o meu pilar, as pessoas que mais amo e que mais que amam. A incondicionalidade deste amor é o destino mais certo. E é para ele que hoje voo.

Borboletas no estômago, coração apertado - ou solto, nem percebo bem -, nervoso miudinho e uma ansiedade enorme. Confessava-me assim, há dias, a uma amiga e disse-lhe:
- Parece que vou ter um encontro de amor!
- E vais!, disse-me ela.

E vou. O maior dos amores. O mais bonito. O mais seguro. O mais inteiro. Sinto-me absolutamente privilegiada por poder vivê-lo desta forma, por poder amar tanto as pessoas cuja presença é, normalmente, transversal aos dias, e pela saudade me obrigar a demorar neste bem-querer .
É uma sensação de festa dentro de mim. É hoje!

 

No colo da chuva

Eu sei que parece que não desperdiçamos uma oportunidade de correr debaixo da chuva. Mas não é bem assim. A maior parte das vezes, comportamo-nos como pessoas normais que se abrigam e resguardam. Mas esta coisa da normalidade precisa de intervalos, daqueles que permitem renovar energias e encantos.
Foi assim na primeira chuva de 2013. Eu, como a natureza por aqui, tinha já sede dessa água e recebi-a como quem acolhe nos braços uma saudade comprida. Depois, voltei aos abrigos e a contentar-me com o barulho da chuva a refrescar as noites e embalar os meus sonos.
Até, devo confessar, começava a ficar um pouco cansada desta época, não pela chuva em si, mas pelos bichos, bicharocos e bichinhos que ela traz. Hóspedes não convidados que nos invadem a casa com um à-vontade escandalizante e nos infernizam a vida no lar.

Hoje fiz as pazes com a chuva.
Começou um vento forte que se ouvia antes de ver e sentir, longe que ele vinha. Logo começaram as danças das árvores, a terra pelo ar, o som grave. Adivinhámos a tempestade e corremos para casa. Ainda demorou a começar a chover e eu e a Carmen sentámo-nos confortavelmente no alpendre extasiadas por aquele grito do céu, pela beleza da tormenta, pelo fresco que acalmava o calor do dia. 
E a chuva começa a cair como se o equilíbrio do ecossistema dependesse da sua intensidade, como se fosse o último dia para dar à terra toda a água guardada no céu. 
Foi quando, do ar sereno da Carmen, sai um sorriso de desafio, os olhos entusiasmados:
- Um banho de chuva??
Hesitei. Estava tão bem como espectadora, que me apetecia continuar ali confortável na plateia. Mas um desafio da Carmen não podia ficar sem resposta!
Enchemo-nos de coragem e corremos até a chuva deixar de ser fria em nós e passar apenas a esse aconchego bom que reconforta e dá paz. E depois foi o ritual espontâneo destes momentos: os olhos que se erguem ao céu, os risos desajeitados, o andar à toa feliz sem saber de onde vem essa alegria... Corremos até à zona onde se vê Bafatá a descer para o rio, mas mesmo aí vimos só nuvens e mais chuva a cair ao longe. Voltámos para casa. No caminho, alguém que, abrigado, tentava perceber o que estávamos nós a fazer e outro alguém, também protegido da chuva, com perguntas banais de corredor de um qualquer edifício, fingindo ignorar a água que escorria no nosso corpo.

E é, mais uma vez, deste tédio dos tempos sem tempo em Bafatá, que nascem encontros perfeitos com o mundo e connosco próprios, e nos rendemos à simplicidade da vida e dos tesouros que verdadeiramente nos enriquecem.
Hoje fiz as pazes com a chuva. E no colo dela embalei o meu coração que não pára de cantar saudades e contar dias. Daqui a nada estou em casa. E por hoje a chuva ajudou a lembrar que aqui também estou em família.





Desapego

Não, este não é um texto sobre o desapego. Pelo menos não um que vá apresentar estratégias e caminhos. É, quanto muito, a história da minha relação apegada às pessoas, às coisas, aos lugares. Será, na sua essência, uma confissão envergonhada desse desapego que não sei aprender.

E se hoje escrevo sobre isto, nem é porque me depare com alguma situação específica. É mesmo porque tenho vindo a tomar consciência do quanto esta limitação me constrange a uma liberdade plena. E porque esta imagem abaixo, de um simples balão que foi solto, me provoca uma ligeira angústia, comprovando quão incapaz sou nesta área. Também, talvez, por uma breve conversa ontem acerca do "deixar ir" e de me ouvir a não dizer nada que ajudasse, tão cúmplice me sinto dessa dor de correntes - invisíveis mas fortes - que nos prendem, a isto ou àquilo.

Não sei deixar partir pessoas e tenho com a morte uma relação quase infantil. Tiremos o quase.
Essa coisa de uma ausência irreversível parecer-me-á sempre contra tudo o que pode caber no meu curto entendimento de lógica. Não faz sentido. A eternidade que as pessoas deixam em nós pede-me sempre vozes, toques e olhares. Não consigo aprender a vida sem a banalidade dos encontros e das presenças que tomamos como garantidas. E não adianta explorar mais.
 
Depois os lugares. Não sei estar em sítio nenhum sem desenvolver sentimento de pertença, sem tornar meus os cantos e as esquinas, a terra que piso ou o chão onde escorrego, as avenidas largas ou estreitas, os móveis velhos que me habituei a usar, o cheiro do amanhecer e as cores do fim dos dias. E, ao mesmo tempo, por mais ridículo que pareça, desde a minha primeira viagem a Luanda, não soube, nunca mais, estar num sítio onde me sinto pertencer, sem que uma enorme parte de mim se sinta demasiado longe desse(s) outro(s) sítio(s) que também acredito fazer parte de mim.
Talvez seja um certo capricho de menina mimada, que se acha dona do mundo, que tem a mania que mora em todas as casas e que, em cada uma delas, deve haver uma cama para descansar os seus sonhos.
 
E é assim com tudo. Mesmo com os momentos mais simples. Até porque esses são, regra geral, os mais bonitos e mais puros, os mais verdadeiros e os mais profundos. Por isso escrevo diários, mantenho agendas. Porque não quero perder nem as lembranças do que vivi. E talvez porque, nesse lugar quase encantado que é a memória, tudo permanece nosso, perene e intocável.
 
Fico sem saber se o caminho é, então, aprender a viver assim, ou forçar-me a experimentar a liberdade pura do desprendimento, do abandono, da renúncia. Porque, na verdade, sempre que vivo essas experiências - quando, racionalmente, me forço a "deixar ir" - se o instante em que solto o balão não é o mais agradável e fixo o olhar até perdê-lo de vista lá no alto, depois há algo que me faz sentir mais inteira, mais capaz. Como se o mundo coubesse mesmo na palma da minha mão.

Falar mantenhas

"Falar mantenhas" é uma expressão do crioulo da Guiné-Bissau que quer dizer algo como "cumprimentar" ou "mandar cumprimentos", dependendo do contexto em que é empregue.

Hoje, depois duma curta visita ali ao nosso alpendre de um amigo meu que trabalha nos escritórios da Cúria, a Helena - em jeito de desabafo indignado - disse:
- Es i ka ta fala mantenha!
(Este nunca cumprimenta!)

E continuou, a explicar que um dia destes estava a limpar o nosso escritório e ele entrou e perguntou: "Nundé Momi?"
(Onde está a Momi?)
E ela indignadíssima, a dizer que só tinha perguntado por mim e "calado a boca". Porque não é assim que se faz! Ele deveria entrar, dizer bom-dia, ou boa-tarde, e, depois sim, explicar que estava à procura da Momi.
 
De facto, as "mantenhas" iniciam qualquer tipo de contacto por aqui. Tudo começa por esse cumprimento e, mesmo que seja só de passagem, prolonga-se quase sempre num "Kuma ku mansi? Kuma di corpo?" (Como amanheceste? Como te sentes?)
E sim, as pessoas respondem, perguntam-te de volta e esperam o que tens a dizer. Por vezes, pode até nem haver um sorriso a acompanhar. O que nunca falta é o interesse e o cuidado.
 
Concordei com ela, mas diverti-me imenso com a sua indignação. Não pela piada em si. Mas pela ternura escondida nos gestos e no trato que sempre me surpreende nos guineenses.
Pouco antes, alguém se tinha aproximado do alpendre para perguntar onde era a Rádio Sol Mansi. Antes, porém, disse boa-tarde. E a Helena respondeu a este "boa-tarde" com tal indiferença, que nunca me passaria pela cabeça que a incomodasse tanto se a pergunta não tivesse sido antecedida pelo cumprimento.

É como, às vezes, quando a vejo falar com o Malaquias, seu filho de 7 anos. Parece sempre falar com frieza e até alguma distância. Isto para mim, que estou habituada à imagem das crianças a serem tratadas com todo o carinho e em cada frase que lhe é dirigida haver sempre a sensação de que naquelas palavras transborda uma espécie de doçura falada, fazia-me alguma confusão. Mas tenho vindo a perceber como há uma preocupação constante, um interesse e um cuidado permanente. E isto acontece de forma prática e objectiva.
Eu é que gosto tanto de pormenores, de miminhos e ternuras, que nem sempre consigo ver para além da dureza dos dias e da vida. Mas um olhar mais atento faz descobrir esse amor que não se sabe mas é corpo nessa entrega quase automática, que não é pensada, num cuidar tão natural e genuíno, que se despe de quaisquer acessórios que o pudessem embelezar.
E não deixo de ficar absolutamente enternecida com esta forma de amar. Invisível de tão evidente.
 
Como no pequeno Malaquias, que no exacto momento em que escrevo, dorme numa cadeira ao meu lado.
Porque gosta de mim, mas não sabe transmiti-lo. Porque quer estar comigo, mas não sabe como dizê-lo. Então vem até ao escritório e inventa motivos. Ou espera que eu os invente.
- Queres fazer um desenho?
Acena que sim com a cabeça e senta-se ao meu lado. Termina e fica a olhar para mim. Elogio o desenho e pergunto se quer outra folha. Diz que não. Pega na cadeira e senta-se mais perto de mim. E fica só a ver-me trabalhar. Olha para o teclado, para o monitor, a tentar perceber o que raio estarei eu a fazer. Os olhos começam a ficar pequeninos de sono.
- Malaquias, não queres ir descansar?
Responde que não, convicto. Os olhos cada vez mais pequenos, o corpo a amolecer. Volto a perguntar-lhe e ele endireita-se na cadeira, tenta arregalar os olhos.
Sei que o seu dia começou cedo e que a esta hora costuma estar caído em sono profundo algures na nossa casa, enquanto espera a mãe terminar o trabalho. Mas reconheço, nesta subtileza infantil, o esforço de viver este dia assim. As aulas terminaram hoje. Pelo que, a partir de agora, ficará em casa, com os irmãos. E eu vou de férias daqui a 3 semanas. Então o pequeno Malaquias continua a debater-se com o sono. E eu não insisto. Finjo que não percebo e deixo-o adormecer tranquilo. Porque agora os meus olhos já sabem descobrir os esconderijos da ternura.