Entretanto

De partida.

A Sóninha dizia há tempos que chegar à Guiné-Bissau não é um acto, é um processo. 
Partir também. Um processo lento, demorado, daqueles que se arrastam em tribunal recorrendo a todas as instâncias possíveis.
Pode parecer estranho, mas as despedidas são vivências profundamente solitárias. E só assim fazem sentido. Por mais que se materializem abraços e cartas, a verdadeira despedida é aquela que se vai fazendo em segredo no coração, nos momentos de silêncio em que todos trabalham concentrados, nos momentos de confusão e euforia em que todos dançam o corpo inteiro de paz e riso, e eu me paro em segundos demorados de contemplação. 
E estas pessoas bonitas e gigantes lá dentro de si, ficam ainda mais bonitas e mais gigantes. Eu a beber as suas belezas em solenidades que finjo banais. 
E a minha Guiné fica mais minha. Tão minha. Tão dentro de mim. Eu tão nela. Tão.
Porque vou embora, mas ainda não fui.
Entretanto, eu continuo aqui, entre tanto. Tanto!

Sagrado

Como se reconhece o sagrado? O que é sagrado?

Acho que o sagrado está para além de qualquer religião, ainda que eventualmente transversal a todas elas. O sagrado está na vida, e aparece de surpresa, quando menos contamos.

Aparece no mais mundano dos prazeres, no mais profundo e mais intenso dos prazeres, rasgando-o, superando-o. Sem pedir licença, sem avisar, sem se fazer notar. E assim distraídos nesse deleite sensitivo, quando parece não haver mais nada a sentir, eis que o sagrado ocorre. Como identificá-lo? Ah! Pudera eu preservar sequer a memória de o ter vivido! É que é tão intangível, que não há como gravá-lo num qualquer modelo conceptual. Não, claro que não dá para descrever. E olhem que eu tentei! Olhem que eu me demorei em viagens de vocabulário para conseguir concretizar isto numa qualquer palavra, ainda uma que inventasse num novo desenho de letras. Mas este sagrado é duma transcendência que até senti-lo nos foge. É um sagrado que não é nosso, não nos pertence. Desce nessa dádiva inesperada de explosão serena de um elemento desconhecido, pedaço divino de viver, instante imaculado de razão.

Loucura

- Mónica, nós somos doidos?
- Como, Irmã?
- Nós somos doidos?
- Nós quem, Irmã? Nós "todas as pessoas do mundo"?
- Nós, todos os que saímos dos nossos países! Não somos doidos??
- Somos sim, Irmã! Somos sim!
- Não somos normais, pois não?
- Não! Mas também a Irmã não queria ser normal, de certeza!
- É... É isso que estou falando! É bom não ser normal. 
(...) 
Se bem que, de vez em quando, eu queria ser normal. 
Estou com saudades. 
(...) 
Vai passar.

Ah! É preciso ser doido mesmo! Ser doido para sair de casa, ser mais doido ainda para voltar. Ser doido para conhecer, partilhar. É preciso ser muito doido para amar. Ninguém no seu juízo perfeito se põe a amar pessoas assim à toa. É que isso dói. Só doido, bêbado talvez, um alguém se permite a desvarios dessa ordem. Pois claro!
Mas há momentos em que bate aquela vontadezinha de ser normal, simples, de experimentar tédios de rotinas e lugares, de não cansar o riso de entusiasmos, de não atormentar o coração de despedidas. E logo passa. Cedemos sempre ao encantamento da loucura, à constante inconstância, à saudade, às borboletas na barriga. Cedemos sempre à Vida. Vivemos. Não, não somos normais. Somos doidos. Que bom!

Os loucos, os verdadeiramente loucos, permitem-se essa loucura, escolhem essa loucura.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, guardam na loucura a força para continuarem a ser loucos num mundo de lucidez cega, de sensatez insípida.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, aprendem de cor o bom-senso da normalidade e representam-no em qualquer palco; como quem brinca ao faz-de-conta, eles brincam à seriedade e à prudência, intervalos da sua saudável demência.
Os loucos, os verdadeiramente loucos, acreditam, confiam, entregam-se, lutam. Só sendo louco mesmo...

Neste mundo é preciso seres louco. Se não, vais enlouquecer.

Desassossego

Viver. Viver encanta. Viver assusta.
Porque viver (viver mesmo! não o simples estar vivo) é esse desassossego intermitente. Essa estrada esburacada que aprendemos a amar. Decoramos os buracos e desviamo-nos com agilidade, mas haverá sempre um novo a surpreender-nos. 
A vida é essa corrida de obstáculos, esse todo-terreno em que somos veículos extremamente bem equipados, ainda que não dominemos toda a tecnologia, porque frequentemente escolhemos os caminhos mais fáceis, mais seguros. E demoramo-nos a olhar mapas, seguindo pelos rumos mais directos, menos complicados. 
A verdade é que, muitas vezes, as coisas mais bonitas são as de mais difícil acesso. Como o caminho para a praia de Varela ou a estrada para o Parque de Cantanhez, na Guiné-Bissau. Às vezes, a meio da viagem, ficamos a pensar se valem a pena tantos saltos, se não tinha sido melhor ir a um sítio mais acessível. E é só chegar lá para se esquecerem rapidamente as dificuldades do trajecto. Mas depois é preciso voltar, viver tudo de novo.

E como me disse hoje alguém, sábio gigante nas suas dúvidas mais ricas que todas as certezas: "Tomei duas decisões: vou amar e vou sofrer." Aceitando o segundo pela inevitabilidade do primeiro. Aceitando o sofrimento pelo inteiro do sentir e ser, pela plenitude que é irrecusável, pelo inadequado da autenticidade e do instinto que inventam errados que incomodam a nossa verdade no outro.
E aceita-se assim a estrada inacreditavelmente esburacada para chegar à praia de Varela. É que vale mesmo a pena!

Estes dias dou por mim a pensar neste meu culto exagerado pela serenidade.
Tenho percebido que o tal sossego bom de sentir pode ser viciante: porque em vez de nos libertar, escraviza-nos dessa segurança e limita as nossas ousadias.
Porque, na vida, é preciso aceitar perder a paz para ganhar intensidade. É preciso aprender esses sobressaltos bons que lembram que os dias não são todos iguais, que a vida não é só o que planeamos (quase nunca é!). É aceitar perder essa serenidade que demoramos tanto a construir, é abdicar desse equilíbrio de que tanto nos orgulhamos.
Viver. Viveeeeer!


Um dia num minuto

Café. Trabalho. Leis e organigramas. Paisagem para o rio. Mais trabalho. Caipirinha. Gente linda numa sala em Bafatá. Risos à toa. Personagens na testa. Perguntas. Mais risos. 
Era só uma. Dissemos que era só uma. Outra?
Estrelas. Muitas. Nessa banalidade luxuosa de um céu humilde na sua grandeza, inteiro na sua partilha. Carrinha de caixa aberta posicionada. Cobertores e almofadas para encostar. Olhos atentos. A estreia. Estrela que salta no céu e desaparece. Conversas tontas. Piadas sem piada que fazem rir mais do que se tivessem piada. O céu que se mexe, e nós quietos, cientistas de novas leis do universo. Uma noite de sexta-feira inventada quando amanhecerá quarta-feira. Provérbios reformulados. Madrugada. Só mais uma estrela. Afinal foram duas. 
Confiar ou não? Viver! Beijar sorrisos. Mais estrelas de olhos fechados. O céu dentro de casa. Dormir.