Fim

É a lei da vida, dizem. Cliché. Mais um. São tantos.
São tantos os clichés e, por mais que os queiramos evitar, não conseguimos fugir deles. É que não conseguimos!

Fim.
Inevitável palavra na última página do livro. Ponto final. E acabou a história. Literalmente.
Fechamos o livro.
Fim.
Noite. Acabou o dia.
Adormecer.
Fim.
Despedida.
Dizer adeus.

Crescemos a acreditar em eternidades, a aguardar um para sempre irrefutável, mas vivemos rodeados de fins. Estamos sempre a viver fins. Mas nem por isso eles se tornam mais fáceis. Não aprendemos. Não melhora.
E depois, temos essa mania disfuncional de prolongar o fim, de transformar o ponto final numas reticências que guardam o mundo que ficou por dizer e fazer.
Não gosto de reticências, raramente as uso. Faço um ponto final e continuo na frase seguinte.
E é disto que precisamos: frases inteiras, terminadas em si mesmas, embora parte de um todo que não se esgota. 
Mas na vida inventamos reticências e nem mesmo nós sabemos o que guardamos nelas. 
A vida também precisa de pontos finais para se construir literatura. Mesmo que doa. Porque dói. Vai doer. Vai passar. Claro que vai passar! Mas antes vai doer. É o fim, caramba, claro que dói!

Mas há uma coisa brutal que todos os fins trazem, uma coisa espectacular, a melhor de todas: princípios. Há algo melhor que um princípio? 
Como este ano a acabar: com a certeza do outro novo a inaugurar no segundo seguinte, deixamo-nos arrebatar no entusiasmo desse início cheio de possibilidades. Ninguém pensa que 2013 vai acabar, ninguém se demora nesse final. A contagem decrescente antes da meia-noite não é a despedida do ano, é a alegria e o acolhimento ao que está a nascer. Todos andamos a sonhar com o 2014, com a agenda nova de páginas em branco para preencher de luz, com as oportunidades intermináveis de vida.

Para que algo comece, é preciso, a maior parte das vezes, que alguma coisa tenha acabado.
Mas bom, a verdade é que não há poesia ou metáfora bonita que ajude a viver esse fim. Para isso, só o tempo. Mais um cliché. Não dá mesmo para escapar ao raio dos clichés? Não. Aceitemos e confiemos.

Às vezes é só o fim de uma recta que acaba nessa curva. Depois da curva? Talvez uma nova estrada, quem sabe uma que se estende pelos infinitos do mundo.


E é madrugada já. O dia, também ele, terminou. Um novo quase a amanhecer. É o princípio.


Surpresa de amor

Ela estava de saída. Ele veio para ficar. 
Doce ironia, irrecusável entrega.

"Quando menos esperares...", diziam. Cliché dos clichés, não é que foi mesmo assim?

E ela aprendeu a beijar sorrisos que não se fechavam. Aprendeu que os corpos podem ser mais do que o prazer, nesse sagrado sublime, espécie de ascese inconsciente. Aprendeu a ler os abraços e os suspiros que falam no silêncio denso de sentidos. Aprendeu o segredo do que se sente e as palavras não dizem, e aprendeu que quando as palavras o dizem, o sentir fica maior que o mundo, como que libertado pelo verbo. 

E assim, sem contar, nesse céu de estrelas cadentes, choviam sagrados e eternidades. Ele distraído, via apenas as luzes brilhantes. Ela corria a apanhar os pedaços dessa magia, a guardar no bolso esses bocadinhos de um divino tocado. Ah, sem exagero. Mas onde se concretizará o divino senão nesse recíproco desejo de alguém? 

Pois, mas é bom não nos envolvermos nesta história, porque ela estava de saída. Já tinha comprado o bilhete. E foi. Viagem demorada, que começou antes do início e continua mesmo depois do fim. 
Parece que toda esta história é apenas essa viagem. A sua preparação, a sua conclusão. 
E não é a vida uma viagem? 
Não é o amor uma viagem ao outro? E que viagem! Não vem no mapa esse destino, não há coordenadas GPS, esquerda ou direita. Apenas uma total desorientação boa de sentir. Uma entrega a esse caminho desconhecido e sempre novo, sempre surpreendente.

Foi uma surpresa. Ninguém estava a contar. Ela já nem sabia amar. Ou não sabia que sabia. Ou não sabia que podia. Foi uma surpresa.
Ainda é.
Às vezes, lá dentro da saudade, ainda fala mais alto essa surpresa de amor. 




Aterrar

Hoje acordei com a chuva a cair de leve na clarabóia do meu quarto. Como um acolhimento da vida, um aconchego da saudade a doer.
Tudo em mim é intenso. Tudo em mim grita. A gratidão que abraça. A distância que sufoca.
E essa suave chuva matinal a lembrar a serenidade à tempestade cá dentro.

É vida. O riso e a saudade, os reencontros e a distância, o para sempre e o nunca mais. Vida a acontecer. 
Hoje eu sei. E não queria que fosse de outra forma. É vida. Esse desassossego na respiração, essa turbulência nos sonhos que ainda não nos acordaram, nas vontades não satisfeitas, nas sedes que ainda não têm água, nos fins que não aceitamos definitivos. É vida. Essa gente que amamos, esses abraços que nos acolhem, as surpresas que não esperávamos, a paz que se impõe em nós no meio de fogo cruzado nos sentimentos. É vida.

Cheguei. O coração a aterrar devagar, com medo de pousar, como se continuar em viagem adiasse a concretização de um adeus. 
Mas cheguei. E o coração pousou. Um pouco forçado, agarrado por uma corda. Mas está aqui, comigo. Ri e chora nessa plenitude de sentir. Explode num fogo misturado de mundos e gentes. Inteiro de amor.
Cheguei.

Fazer as malas

















Pois é... há coisas que não cabem nas malas. 

Estou desde ontem a enfiar coisas dentro das duas malas que me vão acompanhar até Casa, e agora, quase prontas, continuam vazias. Não de espaço, que esse está bem aproveitado. As minhas malas vão vazias do que realmente importa; vão vazias dos sentidos e das aprendizagens, vazias das mil eternidades tocadas, dos instantes em que o céu era mais perto. As minhas malas vão vazias do meu coração a explodir, das lágrimas dos meus olhos, da saudade do que ainda não passou. As minhas malas vão vazias das cores, do peso da terra, da chuva a molhar a pele, dos relâmpagos a incandescerem a alma. As minhas malas vão vazias do corpo sentado no chão, das estradas que cortam os matos, das estrelas a queimar no céu. As minhas malas vão vazias de conversas intermináveis, de gargalhadas patetas, de companheirismo, de entrega, de fascínio.
Nada nestas minhas malas... nem uma só descoberta no bolso lateral, nem um sorriso escondido debaixo duma camisola, nem mãos abraçadas em cumplicidade dentro das meias. Nada. Só roupa, acessórios, livros antigos, sandálias. Como podem estas malas tão pesadas não terem nada interessante lá dentro?
E este vazio das malas rasga em mim o corpo de sentires, nessa responsabilidade gigante de guardar tudo, de não esquecer nada.
Se as minhas malas se extraviarem no caminho, a TAP tratará de me restituir os bens perdidos. Mas e isso tudo que levo dentro de mim? Quem se responsabiliza? A quem vou reclamar se perder momentos, imagens, significados?
Devíamos poder fazer um seguro da nossa memória.

Lembra-te.

Não podes ir embora sem te lembrares. Não podes ir embora sem reveres e guardares.
Lembra-te.
E lembra-te enquanto estás aqui, nos dias que te sobram repletos de tanto, perto ainda das memórias a gravar.
Lembra-te.

Lembra-te de quando aterraste em Bissau pela primeira vez. Do ar húmido a colar no corpo, a dificuldade em respirar. Lembra-te da sede, essa saciada e sempre repetida. 
E lembra-te de te sentires em casa desde o primeiro instante; o longe a doer, o coração a pousar.

Lembra-te de cumprimentares as pessoas na rua, lembra-te de quereres saber os nomes. 
Lembra-te das pequenas coisas e da tua capacidade de vivê-las em plenitude. 
Lembra-te de procurares soluções para os problemas e de todos eles tirares um ensinamento.

Lembra-te dos banhos-de-chuva, da água completa em ti, do fresco a explodir, de risos molhados e partilhados com gente que rasga o teu coração.
Lembra-te de saltar para o rio Geba meio segundo depois de afirmares que nunca o farias.
Lembra-te das estrelas cadentes numa pickup debaixo do céu e das pessoas que estavam contigo nessa caixa aberta para o mundo.

Lembra-te de dançares como se se a tua vida dependesse disso, como se fosse a última noite.
Lembra-te de sempre ser para sempre e quereres sempre mais e, ainda assim, tudo te bastar.
Lembra-te de te sentires a crescer, sendo cada vez mais pequenina.

Lembra-te dos amigos que o serão para sempre, de como te acrescentam vida e beleza, de como aumentam o mundo que conheces e partilhas, de como são grandes no teu coração.
Lembra-te da coragem da entrega, de beijares sorrisos e experimentares o sagrado em intervalos de lucidez.

Lembra-te das cores, dos sons, dos cheiros. Fecha os olhos e vê, ouve, cheira. Sente.

Mas lembra-te também das frustrações repetidas e somadas, de quando parecia que não ias aguentar mais. Lembra-te da paciência esgotada. Lembra-te da lama e da poeira. Lembra-te dos mosquitos, dos grilos, das baratas, dos lagartos. Lembra-te dos militares, dos políticos de treta. 

Lembra-te do escuro e lembra-te das lanternas a iluminar.
Lembra a Guiné inteira em ti, no bom e no mau; e deixa-a ser esse todo que é teu, assim.
Chora. Deixa essa saudade ser recipiente que guarda tudo isto. É essa a verdade.

E lembra-te de ti na Guiné. De quem eras quando chegaste, de quem és agora que partes.
Como te disse a tua alma irmã, "lembra-te de quem és no sítio para onde vais".
Lembra-te.

Cabelo ao vento

















Naquela noite, a lua estava um pequeno arco. Um sofá, um abraço, um baloiço. Dava vontade mesmo de deitar lá, de ficar nesse repouso aconchegado, sem tempo e com todo o tempo do mundo, sem pensar nada que não no prazer desse encontro. E a lua não ia dizer nada. E eu também não. Deixaria que as estrelas contassem o que eu não sei falar.


Às vezes, a vida põe-nos o cabelo ao vento. Como uma passadeira rolante; por mais que nos sentemos num lugar, a vida segue adiante, e nós seguimos com ela. Se estivermos atentos, sentimos mesmo esse vento no cabelo e deixamos o corpo tombar para o lado nas curvas. 
Há momentos em que andamos para trás, mas afinal não saímos do lugar, porque a passadeira continuou a rolar. Outros momentos, apressados,  caminhamos ou corremos, acelerando a vida. Depois, cansados, encostamos no corrimão, deixamos a vida correr sozinha.

Hoje sinto o vento bater-me no cabelo. A passadeira segue numa velocidade estonteante. Sabe bem esta brisa no quente que sinto explodir em mim. Esse calor de vida a acontecer. 
E hoje não haverá lua no céu; ficou pequenina até desaparecer, só pelo prazer de ser fazer nova outra vez. Esta noite ela não será subterfúgio de metáforas desajeitadas. Fica a vida sem figuras de estilo, apenas a poesia sentida e inexpressável.
Sabe bem esta brisa. Não sei parar a passadeira, não posso saltar. Tenho que me deixar ir, o fogo em mim, a brisa a acalmar.