Agora

E as ondas do mar trazem-me à praia. Morta. 
As ondas do mar trazem gente, essência da minha, eu deles, nós todos uns dos outros.
Somos todos nós a seguir embalados pelas ondas do mar. Todos nós. 
uma Humanidade: é a minha Humanidade, é a tua Humanidade, é a Humanidade que partilhamos. Todos. E é nela que morremos em ondas que embalam vidas mortas, em ondas que entregam à praia o sofrimento que vem lá desses outros continentes. 
Demoramo-nos nestas imagens, mas o mais grave não é sequer o que está a acontecer nas marés do Mediterrâneo. O mais grave continua a acontecer nesse longe de onde as pessoas fogem.
E ainda bem que fogem. Ainda bem que se querem salvar. Ainda bem que não desistem da vida. E ainda bem que nos incomodam no seu caminho de sobrevivência. Talvez um dia não precisem fugir.

E é o mar o grande herói. Que traz as pessoas para perto. Que traz a morte e o sofrimento para um continente que fingia ignorar o que se passa ali ao lado. As ondas do mar são como binóculos. Obrigada, mar. Agora é quase impossível ignorar.
Já quase ninguém aguenta novas imagens de famílias desesperadas. Já quase ninguém aguenta ver-se a morrer enquanto humanidade numa praia qualquer. Já quase ninguém aguenta o medo no momento da fuga. Quase, porque ainda há quem se sente confortável na sua vida, sem angústias de mundo na alma. Mas esses não nos importam agora. Já quase ninguém aguenta. Que bom! Era preciso um dia deixarmos de aguentar.
Mas este mar é também berço, maternidade. Poderá ser. Poderá ser este o momento de se sentir Humanidade. É que tudo nos dói aqui tão perto e, afinal, somos tão comuns! 

E não importa o que falhou até aqui, não faz mal ser só agora esta atenção ao outro, não faz mal termos demorado tanto. Não faz mal; já passou. Se é agora, que seja agora.