Devolução

Abriu a época de saldos.
O valor dos seres humanos parece descer cada vez mais e é preciso definir regras para gerir toda esta mercadoria de gente. 

Juntam-se alguns outros seres humanos, daqueles de melhor qualidade, mais caros. Sentam-se confortavelmente em cadeiras de pele à volta de uma mesa. Olhares consternados de quem tem sérios problemas para resolver. Imponência de quem é Deus na decisão de destinos e de vidas.
"É para devolver!"
E eles chegam. Barquinhos pequeninos a transbordar de gente que desafia a sobrevivência. Então é assim: quem não morreu na travessia nem na emoção da chegada, volta para a Turquia. Foi uma boa solução encontrada. A possível. A única possível, claro está. E todos cheios de boas intenções. Por cada criatura dita humana que se devolve, os senhores do outro lado podem mandar uma da mesma espécie, que já estivesse à espera de caminhos. Só assim se consegue gerir esta confusão desenfreada!

Ai! Era o que mais nos faltava, a nós, pobre europa, ter que resolver os problemas desta gente de outros continentes. Nós que nem temos nada a ver com isto! Já muito fazemos nós! Já muito fazemos nós!

Não trazem fatura nem um recibo agrafado na orelha. 
Cometem o crime da esperança de uma vida melhor, de fugir do terror, de sonhar com paz.
São devolvidos e trocados por outros. Cromos de uma caderneta de líderes políticos. Toma lá estes 400 e mandem então 400 dos que já estavam aí. A ver se esta gente aprende que não pode ser assim à toa. Lá porque fugiram a arriscar a vida num pedaço de plástico sobrelotado, em ondas desconhecidas e noites frias, lá porque guardam no olhar e na alma sofrimentos inimagináveis. É lamentável, de facto. Mas não há mais que se possa fazer!

Por falar nisto, ando há dias para ir devolver uma camisola... Acho que já passou o prazo. Que chatice! Lá vão os 20 euros, que aquilo não me serve. 
Pena não ter comprado uma pessoinha, dessas de pouco valor, que vêm com os amigos nos barquinhos. Era mais fácil devolver.

Quando não estiverem tão atarefados, devolvam-me a mim também, por favor.
Sou tão boa como vocês. Revolta vestida de ironia e sarcasmo, e sempre o silêncio das ações.