Querer Ser

Querer ser. Esse sussurro constante cá dentro, que é apenas verdade quando se transforma em grito, quando paramos de fingir surdez e iniciamos caminho, mesmo que ainda à procura de direções.
É mais fácil inventar contentamentos do que seguir aquilo que queremos para nós e para o mundo.
Querer algo é uma ousadia muito grande. É saltar no escuro sem saber se essa vontade terá um chão a amortecer a queda. Mas é também deixar que se ergam as asas dos que transformam os desejos em ações.

Fico a pensar que é mesmo isto que nos define: aquilo que queremos ser. O que queremos mesmo. Aquilo que nos faz levantar da cama de manhã de sorriso no rosto para enfrentar desafios, com entusiasmos que nos acordam por dentro, por ideais que nos despertam a confiança no mundo e na humanidade.
E, acima de tudo, o simples querer ser. Ser. Essência. Querer ser inteiro. Querer ser simples, mas não superficial. Querer ser esse peixe que corre o mar e não tem medo de descer no profundo das águas onde acontecem os milagres. Ser parte de um todo interminável de pessoas e lugares, pertencer assim a essa comunhão invisível de encontros e ternuras.

E porque há tanto mais a fazer, tanto mais a ser, possa esta vontade ser sempre inquietude a impelir.

Migrações

Há exatamente dois meses atrás, acordei de coração pesado, duas malas cheias ao lado da cama, passaporte preparado, despedidas a fazer. Era quase Natal, mas era um Dezembro quente e cheio de sol, porque vivido nesse continente onde a humanidade nasceu.
Despedi-me da Guiné-Bissau num "até já!" de quem tem a certeza que vai voltar.
Horas depois, aterrei em Portugal. Aqui o Natal aproximava-se no meio do frio e da chuva, mas sempre o aconchego das pessoas a ser esse calor cá dentro.
 
Há cerca de dois anos e meio, saí de Portugal emigrante. Há dois meses, voltei imigrante.
Quem um dia salta para o mundo, corre o risco de nunca mais ter uma casa, de nunca mais ser inteiro.
Quem um dia arrisca novas nacionalidades, corre o risco de não ter nunca tijolos suficientes para construir um abrigo onde caibam todas as (suas) nações.
Quem um dia rompe essa corda que nos segura perto, corre o risco de nunca mais nenhuma corda a segurar em lado nenhum.
Mas são riscos que valem a pena. Afinal, corremos riscos todos os dias, desde que saímos da cama, e até mesmo sem sairmos.
Conhecidos os perigos, deslumbrados com todo esse mundo de gentes e cumplicidades, de caminhos e ideais, de costumes e formas de amar, não há nada que nos detenha.
 
Resta-nos, então, recorrer ao mais profundo da nossa criatividade e aprender novas formas de ser inteiro, mesmo que em pedaços. Um puzzle é inteiro mesmo sem estar montado. Então, que saibamos ser essas peças espalhadas que às vezes se encontram, essas partes de nós que serão sempre radar dos sítios onde iremos voltar, dos sítios de onde nunca partimos, dos sítios que moram em nós e nos guardam um cantinho para dormir nas viagens ainda sem bilhete.  O inteiro não tem que estar colado. Tem que Ser inteiro. Tem que se saber. Inteiro é o mundo. Inteira é a humanidade. Peças que encaixam.
 
Sai daqui emigrante. Voltei imigrante.
Há dias, numa reunião relacionada com o trabalho, alguém se apresentou como sendo guineense. E eu, coração de imigrante, pulei cá dentro na alegria de quem encontra um conterrâneo, de quem poderá partilhar as dificuldades de adaptação às diferenças na comunidade de acolhimento.
É engraçado como, efetivamente, ainda me sinto a adaptar e quase ando com o meu passaporte a pedir visto de residência. Parece que não é preciso, que tenho nacionalidade.
E gosto deste país, mas ainda estou a aprender a língua e os costumes. Falta-me aquele crioulo que não tem tradução no português, falta-me cumprimentar as pessoas na rua, confiar na genuinidade das ações, na pureza das intenções.
Ainda me estou a habituar à temperatura e às excessivas camadas de roupa em cima da pele. Talvez seja a roupa a pesar-me cá dentro. Ou seja apenas eu ainda a aprender-me inteira em pedaços.
 
E é com um sorriso de entusiasmo que escrevo sobre esta minha condição de imigrante. Porque, ainda que entre saudades, me alegro sempre por esses bocados de mim que, embora longe, me lembram quem sou, me inspiram, me apontam o caminho.

Beber paz

É preciso beber paz.
Pode ser quente, fria, com açúcar ou sem açúcar, como preferirem. Mas é preciso beber paz!

Beber os raios de sol que se atrevem a rasgar as nuvens, beber aquele arco-íris no meio de taaantos dias de chuva, beber as cumplicidades que espreitam nos estranhos com os quais nos cruzamos nas ruas.
 
É preciso beber paz!
Beber livros que nos aumentem cá dentro, beber pessoas que são vida em nós, beber silêncios tranquilos, beber músicas que dançam no nosso peito.
 
É preciso beber paz!
Engolir horas de conversa boa com amigos, aceitar todos os copos de gargalhadas que nos oferecem, garrafas cheias de entusiasmo.
 
É preciso beber paz, minha gente. É preciso beber paz!
Podem misturar com qualquer alimento, não há interação. Porque esta paz que se bebe vai diretamente para o coração, e em vez de lhe pesar, torna-o mais leve. Fica o coração a flutuar em nós, nessa maré boa e calma de um dia quente de Verão. Com este frio molhado lá fora, somos nós que temos que nos aquecer por dentro. E não, não vale a pena ligarem aquecedores. Basta beber paz.

Já põem tanta coisa dentro de frascos, que me admira, no corredor dos iogurtes, não haver ainda um com um rótulo a dizer "essência de paz".
Talvez não falte muito. Até lá, tem que ser mesmo feito em casa. E há tantas receitas! Tantas formas de beber paz! Não fica caro e pode beber-se tanto quanto se queira. É que não há mesmo contraindicações. Por incrível que pareça, bêbada de paz, ficas ainda mais lúcida, mais plena.

E tu, já bebeste paz hoje?