segundos de Amor

Poucos dias e muito segundos (quando as histórias ainda são pequeninas, precisamos de segundos... são a única escala que lhes faz justiça), conversas à procura de conteúdo, repletas de intenção de amar, de intensidade no simples estar junto . Havia tanto para dizer, mas mais para sentir!

As conversas aumentaram de tamanho, a confundir a simplicidade boa de amar em plenitude.
É que ela tinha medo. Tanto! Do escuro, do bicho-papão, dos ladrões, dos fins, das guerras. Tinha medos com palavras que ele não percebia, com sinónimos que não vinham no dicionário, sentidos inventados de tudo o que ela ia misturando lá dentro. 
Cordas emaranhadas e ele a tentar construir um novelo. Ela em pesadelos de fantasmas de quem nunca sequer morreu, ele a segurar, a acalmar, a proteger.
Ela disse muitas coisas, tantas palavras. Ele ouviu sempre com atenção, tentou perceber tudo e no fim só percebeu que não havia nada para perceber. Só ela assim, desajeitada de coisas a doerem lá dentro, alegrias em risos histéricos e entusiasmos nos olhos arregalados. Tempestade de chuva quente, com trovoadas e arco-íris. E a magia dos abraços. Esses abraços em que ele se entrega inteiro e ela é toda Paz. 

O barco à deriva, cansado de navegar, deixa-se então cair quieto, agarrado a essa corda que o segura preso no fundo da terra. Porque o Amor é a melhor âncora para nos guardar na Vida.

Às vezes, ela ainda nem acredita nesta surpresa. O primeiro encontro não estava marcado e ela chegou distraída. Nem sonhava no seu coração prestes a explodir.

Ela ainda nem acredita no aconchego bom, na cumplicidade a crescer, no prazer a unir. Ela ainda nem acredita que sente tanta coisa boa lá dentro. Às vezes, quando ela fica no olhar dele, ainda nem acredita que é o Amor a acontecer.

E tudo começou naquele primeiro abraço:
- Obrigado por teres esperado por mim., ele disse;
- Obrigada por teres vindo., ela respondeu.
Afinal, já estavam à espera um do outro há tanto tempo...!



Desfazem-se os nós e ficamos nós.

Quantos segundos nos sobram?
Quero todos!


Ondas de vida

Um dia, saiu de Casa. 
Foi Lá e sentiu-se em casa. 

Regressou a casa. 
Mais ou menos.
Um regresso implica voltar ao mesmo lugar.
E nada, nunca mais, foi esse lugar.
A Casa de onde partiu recebeu-a sem paredes e sem chão. Janela inteira a lembrar o mundo. Portas abertas a novas viagens.
Voltou a sair de Casa rumo a um outro Lá que também era casa; e depois outro e outro.

Não sabe explicar, porque não percebe. Encontra-se, às vezes, na poesia que dá sentido a todos os longes; segura-se nessas palavras que dão beleza à dor que incomoda lá dentro. Quando dói bonito, parece que dói menos. 

É feliz nas ondas que embalam a vida. Segue nesse barco de palavras escritas e lidas; palavras que desenham caminho, caminhos que seguem as palavras.
Nenhum ano é igual ao outro. Novas pessoas e novos lugares. Coração a reinventar-se em si mesmo. Saudades e sempre esse longe a gritar. Ondas de efémeras proximidades.
E sempre as estrelas lá no alto. Sempre luzes bonitas em todas as viagens. 

Um céu a emoldurar novos trajetos... e o que ela anseia é mesmo um regresso, mas já não sabe o caminho. O que ela quer mesmo, é descer desse barco de poesias de mundo e ser inteira naquele lugar de onde já nem sabe que (se?) partiu.
Lançar a âncora, prendê-la bem fundo. Pisar terra firme, sem calendários a marcar a próxima partida. Sorrir, respirar e ir devagar. Ficar.

Das Línguas

Chovia de leve; constante e sem ameaçar parar, a chuva era a banda sonora que lembrava esse choro dorido de quem já gastou demasiada energia a sofrer.

O palco abrigado e eles para contarem uma história. Refugiados. Gente sem terra numa Terra que é de todos. E guerras. Guerras de ninguém. Guerras de todos!

A chuva continua a cair num ritmo que embala a história e envolve o palco. Refugiados. É teatro, mas antes que te expliquem, percebes que é real. Uma autenticidade assim não vai lá com ensaios!
Usaram palavras portuguesas, mas vestiram-nas de diferentes pronúncias desses lugares que deixaram de ser casa. E cada palavra era mais mundo.
Também disseram coisas que eu não entendi; outras línguas nas quais não fui capaz de reconhecer significados, mas bebi o sentido nas lágrimas que se misturaram na chuva.

E depois a identidade. A pertença. As roupas que vestimos nas personagens que são reais, em palcos que são vida a sério sem encenação.
De que língua é a tua identidade?

Mais do que uma língua para comunicar, precisamos do silêncio que olha no fundo dos olhos de qualquer pessoa e se encontra inteiro lá dentro.
Há algo em nós, seres humanos, que será sempre encontro sagrado. Somos uns nos outros. Somos uns pelos outros. E somos outros. Somos. 

Agora

E as ondas do mar trazem-me à praia. Morta. 
As ondas do mar trazem gente, essência da minha, eu deles, nós todos uns dos outros.
Somos todos nós a seguir embalados pelas ondas do mar. Todos nós. 
uma Humanidade: é a minha Humanidade, é a tua Humanidade, é a Humanidade que partilhamos. Todos. E é nela que morremos em ondas que embalam vidas mortas, em ondas que entregam à praia o sofrimento que vem lá desses outros continentes. 
Demoramo-nos nestas imagens, mas o mais grave não é sequer o que está a acontecer nas marés do Mediterrâneo. O mais grave continua a acontecer nesse longe de onde as pessoas fogem.
E ainda bem que fogem. Ainda bem que se querem salvar. Ainda bem que não desistem da vida. E ainda bem que nos incomodam no seu caminho de sobrevivência. Talvez um dia não precisem fugir.

E é o mar o grande herói. Que traz as pessoas para perto. Que traz a morte e o sofrimento para um continente que fingia ignorar o que se passa ali ao lado. As ondas do mar são como binóculos. Obrigada, mar. Agora é quase impossível ignorar.
Já quase ninguém aguenta novas imagens de famílias desesperadas. Já quase ninguém aguenta ver-se a morrer enquanto humanidade numa praia qualquer. Já quase ninguém aguenta o medo no momento da fuga. Quase, porque ainda há quem se sente confortável na sua vida, sem angústias de mundo na alma. Mas esses não nos importam agora. Já quase ninguém aguenta. Que bom! Era preciso um dia deixarmos de aguentar.
Mas este mar é também berço, maternidade. Poderá ser. Poderá ser este o momento de se sentir Humanidade. É que tudo nos dói aqui tão perto e, afinal, somos tão comuns! 

E não importa o que falhou até aqui, não faz mal ser só agora esta atenção ao outro, não faz mal termos demorado tanto. Não faz mal; já passou. Se é agora, que seja agora. 

Outra vez.


Já não há Governo na Guiné-Bissau. Outra vez.
A luta pelo poder ganhou. Outra vez.
As pessoas estão cansadas e descrentes. Outra vez.
A ajuda internacional vai limitar drasticamente os apoios. Outra vez.
O desenvolvimento que estava a acontecer nos últimos meses vai retroceder. Outra vez.
Os agentes de cooperação verão o seu trabalho fugir num vazio repetido. Outra vez.
O coração dói-me de Guiné. Outra vez.

Estou zangada, triste, revoltada. Penso nas minhas pessoas, todos os meus pedaços de Guiné-Bissau e queria dizer-lhes que isto é tudo mentira. Não acredito que isto está a acontecer. Outra vez!
Mas não faço nada. Reclamo. Escrevo. Contesto. 
Quieta de ações.

Nas últimas duas semanas e meia, há ratinhos a passear lá em casa. Esquecem-se os problemas do mundo e tudo gira à volta desse drama doméstico e do pânico ridículo e incapacitante. Veneno aqui e acolá, várias viagens à drogaria, mais uma ratoeira. Não desisto e continuo à procura de alternativas que me possam resolver o problema definitivamente.
Se os problemas do mundo fossem ratinhos na minha casa, talvez não dormisse até os resolver; talvez procurasse todas as estratégias possíveis, pedisse ajuda à família, aos amigos e aos vizinhos e mobilizasse toda gente na procura de uma solução. 

Fico a pensar que as guerras, os conflitos, as violações dos direitos humanos, deviam todos acontecer nas divisões das nossas casas. Espécies de hologramas indesligáveis que não nos deixassem viver o dia-a-dia. Gritos de morte a acordarem-nos durante a noite; militares de cara fechada e armas apontadas a nós, bombas a explodir regularmente enquanto descansamos no sofá a ver televisão ou quando tomamos banho pela manhã.
Talvez assim nos uníssemos a sério. Talvez assim a nossa preocupação com o mundo tivesse espelho em ações concretas com repercussões efetivamente positivas. Talvez o mundo fosse Mundo.
Talvez.

E a culpa é minha. A culpa também é minha. E tua. E de todos.
Sinto a culpa e não faço nada. Reconheço a minha responsabilidade e não faço nada. Deixo os dedos saltarem no teclado do computador, mas não faço nada. É só mais um texto a divagar, sem caminhos nem soluções; um conjunto de linhas para aliviar um pouco desta angústia cá dentro que dificulta a respiração. E vou continuar sem fazer nada. Outra vez.

Ubuntu

Ubuntu.
Eu sou porque tu és.

Viver em sociedade implica pisar o mesmo palco que muitos outros atores, sem que haja possibilidade de estudar o “guião” previamente. Quem é, afinal, o Outro com o qual me cruzo no palco? Qual é a sua essência? E de que tamanho é este palco? É sociedade enquanto cidade? Nação? Humanidade?
Antes, respondamos a uma questão ainda mais básica:
Porque tenho que me relacionar com o Outro?
Será que é possível viver individualmente? Sem qualquer relação com Outro?
No limite, a relação com o Outro explica-se pelo próprio egoísmo da felicidade; e a felicidade basta-se pela relação com o Outro. Qual será, na verdade, a maior vantagem que posso obter desta relação? Não serão a cumplicidade e o afeto? Não reside no Outro a verdade da minha humanidade? Parece claro que sim. É intuitiva a semelhança que nos aproxima de todos os seres humanos e as diferenças que nos fazem iguais na medida de cada diferença.
A humanidade do Outro coincide com a minha e reforça-a. Sem o Outro, posso viver, posso viver a vida biológica, mas não posso viver humanamente.
Toda a vida humana é relação com o Outro.
Fora do contexto relacional, a vida humana perde a sua consistência. O homem só se cumpre e adquire realidade humana quando participa de relações recíprocas.

Ubuntu.
Eu sou porque tu és.

Como deve, então, ser esta participação? Como posso salvaguardar a diferença do Outro na minha relação com ele?
A humanidade partilhada pelos homens, deve lembrar que eu não sou mais humano que ninguém. O respeito pelo outro implica, antes de mais, permitir que ele seja diferente de mim.

Sou parte de um Nós, maior do que Eu e maior do que o Outro; e este Nós deve ser expandido, paralelamente a uma solidariedade que evolui, em consequência do acolhimento de diferenças culturais, religiosas e raciais. Dentro desse Nós cabem todas as diferenças que os seres humanos comportam. O Nós está, aliás, muito mais nas diferenças do que nas semelhanças, porque é um conjunto, uma reunião, não de mesmos, mas de outros. E é essa a verdadeira riqueza: a diversidade, a mistura, a compreensão, o respeito, a cumplicidade. A Humanidade.

Ubuntu.
Eu sou porque tu és.

Sempre

Abuso da palavra sempre. E abuso sempre. Quem me conhece já percebe o sentido. Quem não me conhece, não percebe bem o que eu quero dizer.
O sempre não existe. Pelo menos não esse literal. Esse da eternidade que se concretiza apenas na poesia, na intensidade, nos instantes (por vezes até os mais breves).

Como a história de Amor mais bonita do mundo. Não. Aqui não estou a exagerar nas palavras. É mesmo Amor. E é mesmo o Maior.
Sempre é tudo que tem Amor. Tudo que é incondicional. Sempre.

Lembro-me de nas primeiras aulas de Religião e Moral, no 5ºano, fazermos um trabalho intitulado "Eu, uma história de amor". E lembro-me de sentir orgulho nos meus pais e de me sentir, realmente, uma história de amor.
Mas ele é uma história de amor maior. Tão inexplicavelmente desejado. Tão profundamente amado. Não foi a vida que o trouxe. Foi ele que trouxe Vida.
E agora, a celebrar 10 anos de calendário duma gravidez que nos cresceu na alma, alguém me perguntava: "Parece que foi ontem, não?"
Não. Parece que foi sempre.

Sentido















Qual é o sentido?
Em frente.
Sempre. 
Sempre em frente.
Sempre a mesma resposta.

Qual é o sentido?
Qual é o meu sentido?
O meu sentido é o que sinto.
Assim só.

E o mundo?
Qual é o sentido do mundo?
Deixa o mundo. Deixa-te no mundo.
O mundo segue. E tu segues.
Um dia, quem sabe, encontrar-se-ão no caminho.
Segue. É esse o sentido.

Qual é o sentido? Não a direção, a direita ou a esquerda, mas o sentido. Esse da unidade, do todo, do inteiro infinito.
Em que sentido devemos ir para saber o sentido?

Talvez o sentido seja mais fácil de perceber do que de aceitar.
Porque queremos sentidos novos. Sentidos nossos. Sentidos só nossos.
Queremos sentir o que mais ninguém sente. E queremos que todos sigam o nosso sentido.
Queremos tudo. E esse não é o sentido.

Faltar-nos-á, talvez, a humildade necessária para viver esse sentido "em frente" sem procurar outros. Mas não o conseguimos sentir.

Qual é o sentido?

Shh. Fala baixo. Não faças perguntas.
Tanto barulho! Fazes tanto barulho com as tuas perguntas.
Estás sempre a perguntar, sem intervalos, dúvidas constantes, sedes de sentidos que todas as águas do mundo se cansam de tentar saciar.
Estás sempre a perguntar. E nunca ouves a resposta.

Não procures mais o sentido. Não perguntes mais nada.
Segue.
É esse o sentido.

Praia Azul

É noite e já o princípio de amanhã. Ainda falta dormir.

O dia foi de frio e nuvens, mas de sol a queimar os poros. 
Tem sido assim a última semana. Apesar das camadas que nos pesam no corpo, chegamos à hora do banho com a pele mais escura.  O sol não tem ofuscado o olhar, mas não deixa de soprar cor em nós. 
E é assim a descoberta de afetos com quem tem medo de amar: cara feia e sorriso escondido,  mas coração em gargalhada lá por dentro. 

É hora de dormir. 
Queria ser sol a brilhar inteiro, a aquecer e a bronzear. Queria uma vida de sol gigante no céu da Praia Azul. Em todas as praias. E em todos os lugares uma praia. Praias de todas as cores. Mas sempre o mesmo sol.

É hora de dormir. Não há sol no céu nem sentido nas palavras.
Talvez no sonho. 

Ubuntu

Eu sou porque tu és.















Eles são diferentes. São tão diferentes!  Diferentes países,  idades, profissões.  Diferentes ideias, diferentes tamanhos, diferentes pronúncias.
E é essa mesma diferença que os torna absoluta e profundamente iguais. Confundem-se na alegria confiante, nos olhos sonhadores e nas mãos agitadas à procura de acções para concretizar o outro, todos os outros, razões de cada dia que amanhece, de cada pedaço de ar que inspiramos. 
Levamo-nos uns aos outros em cada célula e é só quando nos reconhecemos como família gigante que o universo nos abre as portas à vida.
Não se distinguem misturados em multidão atenta às inspirações, porque são juntos. São humanidade enquanto nação e rasgam essas fronteiras artificiais em pontes de amor.
Eu sou porque tu és.

Encontraram-se lá no alto, com o mundo aos pés, a mostrar-se bonito em ondas de mar a beijar areia, a chamá-los para esse afeto guardado em cada um à espera de explodir na comunhão dos reencontros. Porque cada pessoa que conhecemos é, afinal, um reencontro. Eu sou porque tu és.

Aqueceram a areia da noite com o calor dos corpos contentes. Conversas cruzadas, dedos a dançar em cordas.
Lá em cima as estrelas, mas o céu sentou-se mesmo ali ao lado e cantou com eles.
"Ke ki mininu na tchora?" A Guiné aqui tão perto. Depois Cabo-Verde. E afinal era o todo o mundo que cada um carregava em si!
Eu sou porque tu és.

Há instantes que agregam despedidas e reencontros, saudades e novos amores. Segundos que são todos os calendários, pessoas que nos devolvem os que não estão cá, lugares que são todos os sítios que pisamos em entrega. E a sofreguidão de viver acalma-se cá dentro, porque bebemos o mundo e há sempre mais mundo para beber. Há sempre mais mundo para conhecer e partilhar. Só para descobrir, no fim, que o mundo esteve sempre dentro de nós.
A Academia Ubuntu é esse instante. A Academia Ubuntu são essas pessoas. A Academia Ubuntu são todos esses lugares.
Eu sou porque tu és.

E ela, perdida na sua inquietude infantil, encontra-se nesse novelo de gente. E o coração deixa de doer da angústia do caminho. E volta a acreditar que é possível. O Mundo é possível! Mas só assim faz sentido. Só assim.
Como quando queremos cantar a nossa música preferida mas, desafinados que somos, não ousamos soltar a nossa voz sozinha. Erga-se um coro de vozes e lá estaremos nós a cantar também. Juntos não desafinamos. Fica uma só voz, inteira de mundo.

Ubuntu. Eu sou porque tu és.

O que é

que podemos fazer?, ela pergunta.
E pergunta como quem quer saber a resposta; não é uma pergunta retórica de quem vai dormir descansada porque afinal não há nada a fazer.
O que é que podemos fazer?
É uma pergunta de quem não deixa de dormir, mas acorda com esta preocupação.
O que é que podemos fazer?
É uma pergunta de quem não deixa de rir e dançar, mas trocaria tudo para seguir nesse caminho novo rumo a soluções.
O que é que podemos fazer?
É uma pergunta de quem não tem uma estratégia definida , mas seria a primeira a deixar tudo para tentar tudo.
O que é que podemos fazer?
É uma pergunta de quem fala baixinho, mas gritaria até ficar sem voz, chegasse a revolta para calar os tiros.
O que é que podemos fazer?
É a pergunta de quem não tem um plano, mas tem ideias; de quem não tem poder, mas tem vontade; de quem não acredita no sistema, mas confia no mundo.

É esta pergunta (ainda) sem resposta que ecoa como mantra pelos dias. E é existirem pessoas que não desistem de fazer esta pergunta que me faz olhar o mundo com os olhos vidrados pelo cliché da esperança.

O Mundo é possível!
Assim o queiramos. 

Igreja

Um professor da América Latina editou um dicionário com definições infantis recolhidas ao longo de anos junto dos seus alunos. É engraçado ler as diferentes palavras com significados construídos pelas crianças, que olham o mundo com uma clareza que todos perdemos ao crescer. Até nos podemos esforçar para manter essa essência da infância em nós, mas há uma espontaneidade que, inevitavelmente, perdemos, pelo menos em toda a sua autenticidade.

Neste dicionário, Igreja aparece com a seguinte definição:
"Onde a pessoa vai perdoar Deus."

Demorei-me nesta interpretação de serem os templos lugares onde o humano perdoa o divino.
E temos tanto para Te perdoar, Deus. Que é preciso que as Igrejas sejam grandes e confortáveis, possa a nossa dor ter aconchego.
Perdoar-Te o Holocausto e a escravatura, perdoar-Te o terrorismo e a descriminação, perdoar-Te as guerras e as mortes sangrentas, perdoar-Te a indiferença e a luta pelo poder.
Às vezes espero mesmo que não existas, porque não sei se Te conseguiria perdoar. 

Nenhuma Igreja é suficientemente grande.
Talvez o mais difícil de perdoar seja mesmo o facto de o humano ser tão pouco divino, de o humano ser tão pouco humano, de o humano se auto-destruir enquanto essência.

Nunca Te perdoarei não me fazeres mais forte, mais corajosa. Não Te perdoo não me teres feito mais astuta, mais contestatária, mais consciente. Não Te perdoo esse céu imenso e eu sem asas. Não Te perdoo.

Perdoas-me Tu?

Je suis Charlie



Eu sou o Charlie, porque aparentemente isso tem mais valor do que ser uma criança sem nome algures na Faixa de Gaza.
Eu sou o Charlie, porque a liberdade de imprensa é mais importante do que a liberdade religiosa.
Eu sou o Charlie, porque jornalistas apanhados desprevenidos no local de trabalho são mais importantes do que pessoas mortas numa explosão num mercado local.
Eu sou o Charlie, porque o pânico vivido nas escolas em Paris é mais grave do que o terror quotidiano que se vive na Síria.
Eu sou o Charlie, porque os jornalistas franceses são mais importantes que os jornalistas da Guiné-Bissau.
Eu sou o Charlie, porque a Paz é mais necessária em Paris do que na Nigéria.
Eu sou o Charlie, porque a morte de 12 jornalistas é mais importante do que o número mínimo de 30 mortos por dia na Síria, num total de cerca de 76 000 só no último ano.
Eu sou o Charlie, porque a destruição da redação de um jornal francês é pior do que as mais de 20 000 casas destruídas na última guerra em Gaza.

Eu sou o Charlie, porque repetidamente me esqueço que há mundo para além das fronteiras ocidentais.