Impermanência

Impermanência. A dos ciclos. E a que nos surpreende.
Impermanência. O mais irónico desta impermanência é que ela é constante. Então ela é quase estável. Como se a sua constância anulasse a própria impermanência.
 
Cá em casa eramos 4. Passámos a ser 3, e agora, num curtíssimo espaço de tempo, somos 2. Mas desenganem-se se pensam que isto é uma questão de números. Não é de Matemática que falo. É de pessoas. De histórias. De cumplicidades. De olhares que falam quando as palavras pagam imposto. De sorrisos que nos respondem. De silêncios que são toda a companhia e compreensão que precisamos. Das palavras que já nos conhecem, que já conhecemos. De colo, de família, de casa. De porto seguro que somos uns nos outros.
 
Mas não, não é o fim do mundo. Há telemóveis, há internet, há encontros. E, mais que tudo isto, há o que houve. E se conserva. Há aquele momento inesquecível, há a noite em que chorar foi mais fácil só por aquela presença, há a conversa em que Deus ficou mais simples; há gargalhadas sem fim e sem sentido, há coisas coladas pelas paredes, há coisas gravadas dentro de nós. E há alguém com quem partilhar estas memórias e construir novas. É um 2 pequenino, mas um 2 bom.
 
E sempre volta esta frase de Saint-Exupéry:
Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.
Não o diria melhor. É, de facto, a forma mais simples e inteira de explicar as parcelas de gente que cada um de nós é. Essa manta de retalhos partilhada que nos aquece dos frios da vida, esse aconchego onde descansamos os risos e as conversas.
 
É isto que a impermanência no ensina, é isto que ela nos pede. Que vivamos. Que vivamos as pessoas, os lugares, os momentos. Que saboreemos cada onda que nos molha de sal nesse mar de vida. Que saibamos estar gratos pelas coisas boas nos nossos dias. Que sejamos atentos. Que valorizemos as pessoas e o que elas nos acrescentam. E só assim construiremos eternidades.
É isto que a impermanência grita em nós: Aprecia. Contempla. Admira. Agradece. Encanta-te.

Ao ritmo do leque


 
Estava guardado num cestinho no quarto desde Dezembro. Depois de meses em que era um produto indispensável, Dezembro chegou e trouxe dias mais fresquinhos. Mais ou menos pela mesma altura em que os grilos deixam de ser uma praga e voltam a ser apenas o som que nos adormece à noite, na mesma altura em que os sapos do alpendre parecem emigrar, o leque deixa de ser necessário.
O fresquinho começa por ser louvado com entusiasmo, até que rapidamente, criaturas insatisfeitas que somos, logo começam as queixas do “frio” com um casaquinho leve a cobrir-nos os braços. Mas não dura muito. Com Março a chegar, os dias voltam a ser cada vez mais quentes. É altura de voltar a pegar no leque, sacudir-lhe o pó da estação seca, e fazer vento com as mãos. A temperatura é a mesma, mas nós encontramos forma de a suportar com maior tolerância pela ventoinha que inventamos em gestos ritmados.
 
Ciclos. Ciclos que se processam no seu compasso normal. O dia que amanhece, o sol a subir; depois ele lá no alto, cheio de luz, até que começa a descer, escurecendo o dia mesmo a tempo de nos deixar regressar a casa da nossa caminhada. O sol descansa e vem a noite, o escuro poético do brilho das estrelas, do pedaço de lua lá no meio. E nós descansamos também. Corpo relaxado do dia a terminar, cabeça com mil pensamentos que aos poucos desmaiam em nós, e dormimos. Até que, nesse que é o melhor instante do sono, é preciso acordar e começar tudo de novo. Ciclos.
Um ano novo que começa, agendas em branco, vontade de preencher as páginas de coisas interessantes, sensação de poder fazer tudo melhor. Frio, muito frio. Domingos de chuva entre o sofá e a televisão, os livros aquecidos pela manta nas pernas. Depois o Carnaval e a seguir a Páscoa. Primavera, flores, dias mais quentes, alergias. E está quase aí o Verão: o calor, as férias, praia e o mar, (re)encontros de família e amigos no eterno Agosto dos emigrantes. Setembro traz novos reinícios. O tempo vai arrefecendo, o Outono pinta as paisagens e começamos a preparar o Natal. Essa explosão boa de alegria e aconchego familiar, onde somos mais quentes juntos pelo frio lá fora. E logo depois começamos a preparar o novo ano, tudo do princípio, outra vez. Ciclos.
A vida. Nós que repetimos genuinamente o entusiasmo a cada novo bebé que começa a respirar. Nós que nunca nos cansamos da ternura das crianças, de nos demorarmos nas suas aprendizagens do mundo. Nós que nos perdemos no existencialismo da adolescência, na escolha da profissão, no sonho de ter filhos, na alegria redobrada dos netos. Nós que nunca aprendemos a aceitar a morte como parte desse ciclo.
 
E a paz. Essa de ciclos também. De quando a angústia vem e aperta, de quando as saudades doem, de quando queremos casa. E de quando, depois de chorar tudo que havia para chorar, o coração nos surpreende repleto de paz, do conforto das pessoas que amamos, mesmo longe; da certeza do caminho que seguimos, dos pés felizes pela terra que pisam. Quando já passou o pior ou temos a certeza que vai passar. Quando descobrimos uma solução ou seguimos empenhados e confiantes em alternativas. E tudo parece perfeito. Cada coisa no seu lugar, no seu tempo. Embora, em qualquer instante, se nos dessem a possibilidade de escolha, a varinha mágica dos milagres, tudo seria um só lugar e um só tempo. Sempre.
 
E então, quando a tristeza vem, seja o que for a trazê-la, relembramos destemidos o gráfico desses ciclos e sabemos relativizar, e continuar a beber a luz dos dias, sempre atentos, inquietos, mas imperturbáveis. Seguros na certeza dos ciclos que permitem que haja frio e calor, flores e frutos, dia e noite, agitação e sono profundo. Tudo é uma coisa só. E nós somos toda ela. Cada um de nós. Todos nós.
 
Que a metáfora do leque possa ir além dos ciclos. Que a brisa que nos acalma o calor e seca o suor, possa ser esse sopro de paz que deixamos cair em nós, que acalma a saudade, que desinquieta as dúvidas.
Possamos ter sempre connosco um leque de brisas.
 

Morte

Há gritos aqui ao lado. Há trabalho para fazer e tento ignorar. Os gritos continuam e intensificam-se. Já os conheço de cor, já sei fingir que não me incomodam, já sei fazer de conta que não oiço. E tenho coisas para fazer.
Mas eles continuam. E insistem fazer-se ouvir. E teimam em fazer-me ouvi-los. Em lembrá-los.
 
O hospital de Bafatá é atrás de nossa casa, ao lado do escritório. Das janelas dos nossos quartos, acompanhamos sempre os gritos que a morte traz: o choro, a tristeza, a vivência cultural e tradicional em que gemidos e cânticos confundem e misturam rituais com sofrimento.
Do escritório ouve-se mais ao longe e o trabalho distrai-nos.
Em casa, auscultadores com música podem ajudar a levar o barulho e o sofrimento para longe. Não que sejamos indiferentes, muito pelo contrário. Mas porque, simplesmente, não cabe mais. Não cabe mais angústia, mais impotência.
Somos demasiado pequenos para tanto que há a fazer e precisamos concentrar-nos nas nossas pequenas tarefas, para que pelo menos estas, apesar da sua pequenez, possam ser concluídas e assim iludir-nos no cumprimento do nosso papel enquanto nos ensurdecemos ao barulho que chega do hospital. Enquanto abafámos o que não percebemos, não conseguimos explicar, não temos como ajudar a resolver.
 
Um ano e meio depois, estes gritos continuam a dar-me socos no estômago. Os cânticos em coro desafinado pelas pessoas que se vão juntando fazem-me sempre sentir ainda mais pequena, mais inútil. E, egoistamente, não quero saber quem foi; não quero saber o nome, a família, a causa da morte. Não quero saber. Não cabe. Não cabe mais.
 
E hoje, agora, depois de tantos choros partilhados pela janela do quarto, depois de tantos outros que me forcei e aprendi a ignorar, este fez-se ouvir. Escalou todas as minhas tentativas de insensibilidade. Entrou repetidamente pela janela do escritório. E fez-me parar.
Como que a pedir-me que nunca deixe de me chocar. Que nunca deixe de me comover. 
E talvez a lembrar-me dessa despedida sempre difícil que é deixar partir as pessoas que amamos. A Pequenina faria hoje 74 anos.

 

Um pouco mais que nada

Há uma semana atrás, por esta hora, regressava de mais uns dias pelas escolas do Sul da Guiné, desta vez em Empada.
Há uma semana atrás, por esta hora, vinha no caminho cansada dos dias de trabalho e formação, corpo dorido da estrada de terra vermelha inacreditavelmente esburacada, e coração pleno de paz.
Há uma semana atrás, por esta hora, não adormeci na viagem; pensava em tudo que melhorou nestas escolas, em como tinha corrido bem o trabalho e em como, ainda assim, continuava a ser preciso fazer tanto mais, tanto melhor.
Há uma semana atrás, por esta hora, chegava a casa com a sensação de que me ia lançar ao computador e escrever, escrever… mas paralisou-me a sensação de que, afinal, tinha feito tão pouco.
Há uma semana atrás, e nos dias que se seguiram, fui lembrando o Professor Braima, “sozinho na escola”, que nos recebeu no portão da escola tranquilo e sorridente. 
Consciente de todas as carências do professor e do meio escolar onde está, confesso que não esperava grandes melhorias. E que boa surpresa! Fez tudo bem. Quase tudo. Tanta coisa! Até o mapa de docentes onde só o seu nome consta, até o registo de assiduidade de professores onde só ele assina e só ele controla.
Se sonhassem as dificuldades que ele passa, as condições daquela escola, a casa onde ele mora, o salário ridículo que ele recebe, vocês também iam achar que era importante escrever sobre isso. Fez tudo o que lhe expliquei na última visita, pôs em prática tudo o que foi trabalhado na formação.
E perante tamanha superação, tamanha entrega, tamanha dedicação, fica ainda menor o que damos, o que eu dou. O que fazemos, o que eu faço.

É só um pouco mais que nada. E é tão pouco que às vezes é mesmo quase nada. Mas nunca é nada. Apenas pouco.
Mesmo quando acreditamos muito, quando trabalhamos muito, quando pensamos muito, quando desejamos muito, quando procuramos muito, quando amamos muito. É pouco.
Como gotas. Gotas de água que se somam num compasso demasiado lento.
Não matam a sede.
Nem sequer a minha.
Tudo é tão pouco.
É preciso mais.
Mas eu não sei o quê. Ainda.
É preciso uma chuva de gotas. Um torrente de acções, de entrega.
Somar gotas não é suficiente. É preciso multiplicá-las.
Tenho sede.
Tenho tanta sede…

Ainda assim, nestes dias não há nada melhor - nada melhor! - do que chegar à noite feliz pelo cansaço no corpo e na mente. Cansaço bom de quem deu tudo e fica ainda mais repleta, cansaço de energias gastas e coração cheio. Pela paz serena e pela certeza do caminho. E inquietude. Sempre inquietude.

Há uma semana atrás, por esta hora, era assim que esvaziava a mochila de roupa e papéis. A cabeça cheia a pensar no pouco que foi o tudo de mim. Coração inquieto a querer mais.

Bissau

é uma cidade que nos surpreende sempre, que todos os dias tem coisas para nos ensinar. Bissau é uma cidade que nos torna mais fortes. Que nos cansa pelo lixo e pela confusão. Que nos choca. Que nos irrita. Que nos enche de luz nos sorrisos que gritam alegria. É assim uma cidade de misturas, que confunde e encanta pelos segredos que esconde. Pela solidariedade que comove porque surge despretensiosa, sem vaidade, num ajudar e cuidar como quem protege os filhos em casa. Bissau é como o pai pouco carinhoso e rabugento, que ama no silêncio do coração, calado pela vida dura e cansada.
Aqui nunca passarás perto de alguém que esteja a comer sem que sejas convidado a partilhar da sua comida. Não porque seja particularmente simpático, não obrigatoriamente por gostar muito de ti, mas porque é assim que se faz. Oferece-se o que se tem. E insiste-se. "Bim cumi!'
Aqui, nunca terás sequer que pedir ajuda para empurrar o carro que ficou sem bateria, para trocar o pneu furado, para desatolar a pickup enterrada na lama.
E exemplos assim há muitos, todos os dias, em gente que ama distraída, sem saber. No condutor que, no meio do trânsito caótico, estica o braço pela janela para corrigir a porta mal fechada do carro na faixa ao lado, sem olhar para o outro condutor, sem esperar ouvir "Obrigado!"; no homem que se aproxima e nos manda fechar a carteira esquecida aberta.
Sabem aquela sensação boa quando ajudamos alguém que não conhecemos num qualquer contexto dos nossos dias? A pessoa que agradece surpresa pelo nosso gesto, nós que seguimos orgulhosos de nós próprios. Aqui isso não acontece; ajuda-se porque, simplesmente, é assim que se faz. Ninguém fica muito orgulhoso, ninguém agradece muito. 

Foi ainda agora, agorinha, há minutos... Vinha com a Rita numa rua vazia do centro da cidade, plena luz do dia, um senhor estranho que nos aborda, a insistir nem percebemos bem no quê, e um táxi que se aproxima rápido, a buzinar; encosta no passeio, manda o senhor embora, diz-nos para entrar no táxi e deixa-nos 200 metros à frente, livres de um qualquer perigo que não tivemos sequer tempo de identificar ao certo. O taxista não quer aceitar que paguemos, não se preocupa em explicar muito, não tem ar de quem acabou de fazer uma grande acção, não espera elogios. Continua o seu caminho com a naturalidade de quem cresceu a cuidar e a ser cuidado sem saber que cuidava e era cuidado. Aqui o amor não se fala, não se diz. Não se adorna de sorrisos e miminhos. Apenas é. Assim. Simples.