Morte

Há gritos aqui ao lado. Há trabalho para fazer e tento ignorar. Os gritos continuam e intensificam-se. Já os conheço de cor, já sei fingir que não me incomodam, já sei fazer de conta que não oiço. E tenho coisas para fazer.
Mas eles continuam. E insistem fazer-se ouvir. E teimam em fazer-me ouvi-los. Em lembrá-los.
 
O hospital de Bafatá é atrás de nossa casa, ao lado do escritório. Das janelas dos nossos quartos, acompanhamos sempre os gritos que a morte traz: o choro, a tristeza, a vivência cultural e tradicional em que gemidos e cânticos confundem e misturam rituais com sofrimento.
Do escritório ouve-se mais ao longe e o trabalho distrai-nos.
Em casa, auscultadores com música podem ajudar a levar o barulho e o sofrimento para longe. Não que sejamos indiferentes, muito pelo contrário. Mas porque, simplesmente, não cabe mais. Não cabe mais angústia, mais impotência.
Somos demasiado pequenos para tanto que há a fazer e precisamos concentrar-nos nas nossas pequenas tarefas, para que pelo menos estas, apesar da sua pequenez, possam ser concluídas e assim iludir-nos no cumprimento do nosso papel enquanto nos ensurdecemos ao barulho que chega do hospital. Enquanto abafámos o que não percebemos, não conseguimos explicar, não temos como ajudar a resolver.
 
Um ano e meio depois, estes gritos continuam a dar-me socos no estômago. Os cânticos em coro desafinado pelas pessoas que se vão juntando fazem-me sempre sentir ainda mais pequena, mais inútil. E, egoistamente, não quero saber quem foi; não quero saber o nome, a família, a causa da morte. Não quero saber. Não cabe. Não cabe mais.
 
E hoje, agora, depois de tantos choros partilhados pela janela do quarto, depois de tantos outros que me forcei e aprendi a ignorar, este fez-se ouvir. Escalou todas as minhas tentativas de insensibilidade. Entrou repetidamente pela janela do escritório. E fez-me parar.
Como que a pedir-me que nunca deixe de me chocar. Que nunca deixe de me comover. 
E talvez a lembrar-me dessa despedida sempre difícil que é deixar partir as pessoas que amamos. A Pequenina faria hoje 74 anos.

 

2 comentários:

  1. Só quem tem alma pura consegue amar tanto!

    Parabéns Pequenina!

    Parabéns querida filha por teres a Luz em ti!

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    1. Só quem é mãe consegue ver tanta Luz nos filhos :)
      Saudades da nossa Pequenina*

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