Ao ritmo do leque


 
Estava guardado num cestinho no quarto desde Dezembro. Depois de meses em que era um produto indispensável, Dezembro chegou e trouxe dias mais fresquinhos. Mais ou menos pela mesma altura em que os grilos deixam de ser uma praga e voltam a ser apenas o som que nos adormece à noite, na mesma altura em que os sapos do alpendre parecem emigrar, o leque deixa de ser necessário.
O fresquinho começa por ser louvado com entusiasmo, até que rapidamente, criaturas insatisfeitas que somos, logo começam as queixas do “frio” com um casaquinho leve a cobrir-nos os braços. Mas não dura muito. Com Março a chegar, os dias voltam a ser cada vez mais quentes. É altura de voltar a pegar no leque, sacudir-lhe o pó da estação seca, e fazer vento com as mãos. A temperatura é a mesma, mas nós encontramos forma de a suportar com maior tolerância pela ventoinha que inventamos em gestos ritmados.
 
Ciclos. Ciclos que se processam no seu compasso normal. O dia que amanhece, o sol a subir; depois ele lá no alto, cheio de luz, até que começa a descer, escurecendo o dia mesmo a tempo de nos deixar regressar a casa da nossa caminhada. O sol descansa e vem a noite, o escuro poético do brilho das estrelas, do pedaço de lua lá no meio. E nós descansamos também. Corpo relaxado do dia a terminar, cabeça com mil pensamentos que aos poucos desmaiam em nós, e dormimos. Até que, nesse que é o melhor instante do sono, é preciso acordar e começar tudo de novo. Ciclos.
Um ano novo que começa, agendas em branco, vontade de preencher as páginas de coisas interessantes, sensação de poder fazer tudo melhor. Frio, muito frio. Domingos de chuva entre o sofá e a televisão, os livros aquecidos pela manta nas pernas. Depois o Carnaval e a seguir a Páscoa. Primavera, flores, dias mais quentes, alergias. E está quase aí o Verão: o calor, as férias, praia e o mar, (re)encontros de família e amigos no eterno Agosto dos emigrantes. Setembro traz novos reinícios. O tempo vai arrefecendo, o Outono pinta as paisagens e começamos a preparar o Natal. Essa explosão boa de alegria e aconchego familiar, onde somos mais quentes juntos pelo frio lá fora. E logo depois começamos a preparar o novo ano, tudo do princípio, outra vez. Ciclos.
A vida. Nós que repetimos genuinamente o entusiasmo a cada novo bebé que começa a respirar. Nós que nunca nos cansamos da ternura das crianças, de nos demorarmos nas suas aprendizagens do mundo. Nós que nos perdemos no existencialismo da adolescência, na escolha da profissão, no sonho de ter filhos, na alegria redobrada dos netos. Nós que nunca aprendemos a aceitar a morte como parte desse ciclo.
 
E a paz. Essa de ciclos também. De quando a angústia vem e aperta, de quando as saudades doem, de quando queremos casa. E de quando, depois de chorar tudo que havia para chorar, o coração nos surpreende repleto de paz, do conforto das pessoas que amamos, mesmo longe; da certeza do caminho que seguimos, dos pés felizes pela terra que pisam. Quando já passou o pior ou temos a certeza que vai passar. Quando descobrimos uma solução ou seguimos empenhados e confiantes em alternativas. E tudo parece perfeito. Cada coisa no seu lugar, no seu tempo. Embora, em qualquer instante, se nos dessem a possibilidade de escolha, a varinha mágica dos milagres, tudo seria um só lugar e um só tempo. Sempre.
 
E então, quando a tristeza vem, seja o que for a trazê-la, relembramos destemidos o gráfico desses ciclos e sabemos relativizar, e continuar a beber a luz dos dias, sempre atentos, inquietos, mas imperturbáveis. Seguros na certeza dos ciclos que permitem que haja frio e calor, flores e frutos, dia e noite, agitação e sono profundo. Tudo é uma coisa só. E nós somos toda ela. Cada um de nós. Todos nós.
 
Que a metáfora do leque possa ir além dos ciclos. Que a brisa que nos acalma o calor e seca o suor, possa ser esse sopro de paz que deixamos cair em nós, que acalma a saudade, que desinquieta as dúvidas.
Possamos ter sempre connosco um leque de brisas.
 

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