Pedacinhos de vida

“Ganha a última equipa a chegar.” 
Terminei eu assim a explicação de um jogo que nos ocupou hoje a tarde nas Jornadas de Lançamento do ano lectivo 2013-2014 das escolas das Missões Católicas de Bafatá.
“Mas, Mónica, os últimos é que ganham??”
Ri de mim própria, e corrigi o erro. Os primeiros é que ganham, pois claro!

É assim quando se dorme pouco em noites de conversas no alpendre e dias de muito trabalho. Olhos pesados a quererem dormir, mas coração inquieto pela Guiné-Bissau em mim, pela eminência de uma despedida que se vai aproximando timidamente, pela sensação de haver ainda tanto a viver e saborear.

É preciso ousadia para ser feliz. É que pode ser mal visto, mal interpretado.
Aparentemente, sou assim algo desavergonhada nessa coisa da felicidade. É o que dizem. E parece que devia disfarçar a minha alegria, contê-la talvez, fechar a cara um pouco para ser levada a sério e não dar espaço a abusos.
N’ka nega, ma n’ka pudi! - diria no crioulo da minha Guiné-Bissau, uma espécie de “Não é que eu não queira, mas não posso / não consigo.”
Na verdade, não quero mesmo. Perdoem-me os mais austeros, mas continuarei neste exagero de sorrisos e gargalhadas. Vá, e nem é tão exagerado assim.

Dizia agorinha o Pierre: “A Mónica ri tanto, que parece que vai acabar de rir hoje; amanhã já não terá risos.” 
Tenho! É que eles multiplicam-se. É como o fogo que quanto mais queima, mais tem para queimar. O riso é essa alegria boa a arder cá dentro.
E rimos tanto esta tarde! Numa actividade em que aprenderam tanto quanto se divertiram. Afinal os adultos na Guiné-Bissau são só crianças cujo corpo envelheceu: brincam inteiros de entusiasmo e reivindicam as batotas no faz-de-conta como nunca se atreveriam no mundo real. Como foi bom vê-los soltos e confiantes, orgulhosos e empenhados. Por isso continuo a rir, o coração repleto a suspirar. 
E não estava tão errada assim: terminado o jogo, ganharam os primeiros, mas também os últimos, e os que ficaram em segundo lugar… e todos!

E ganhou o Braima. Nada a ver com o jogo. É o professor de Empada que faz sempre mais do que pode, quase a trocar a expressão guineense que referi acima: ele não pode, mas quer, então faz. Como? Eu sei lá. Já expliquei que de milagres sou apenas testemunha, nunca percebi como funcionam. 
E então o Braima hoje ganhou uma mota; doação que a FEC tinha disponível para uma escola e ele foi o feliz merecedor. Menino contente de olhos gigantes de entusiasmo, manhã de Natal em contemplação do novo brinquedo, quilómetros de vida (um pouquinho) mais fácil. 
No final da tarde, depois de todo o trabalho e de toda a brincadeira, deixei-me estar no alpendre a apreciar ao longe a devoção com que se demorava na mota. Uma imagem absolutamente encantadora! E o meu coração sempre mais cheio!
(Meu Deus, como é que eu hei-de ir embora?)

Ah, e os três estarolas no escritório? A cumplicidade é mesmo a melhor coisa do mundo. Nesta sou mera espectadora, que não apanho a maior parte do que se passa ali, mas delicio-me com as piadas que não percebo, com as conversas em meias palavras porque a outra metade é adivinhada. E mesmo sem participar, gosto de vê-los nessa construção bonita. Gosto de ver equipa outra vez; essa coisa de gente tão diferente que encontra uma forma de se encaixar e funcionar como um todo, mesmo sem se aperceberem.

E eu só assim, assistente de pedaços da vida a acontecer. 
Como podia não ter o coração a rir em explosões de paz? 
Ah! N’ka nega, ma n’ka pudi!


Do medo

Medo de sentir. Medo de não sentir. Medo de querer. De querer mais. Medo de não querer mais.
Medo de partir e medo de ficar. Medo de mim no outro; medo dele em mim.
Insegurança. Vulnerabilidade. 
Medo.
Não de ladrões ou psicopatas; não de cobras ou trovoada. Medo da vida. Essa coisa a acontecer e a mexer cá dentro, que aperta e confunde, que encanta e extasia.

O medo é a maior complexidade da vida. Complica tudo. Equaciona tudo. Não entrega nada. O medo trava, esconde, disfarça. É a maior ditadura a limitar a nossa liberdade.

Quantas coisas deixamos de dizer e de ouvir? Quantas coisas deixamos de sentir?

Como seríamos nós, se não tivéssemos medo?
Como seria este mundo cheio de gente que diz o que sente, que abraça quem deseja, que vai onde quer? Um bando de loucos a rir à toa com o coração a explodir paz.

Ontem adormeci a pensar neste medo e a sentir que, de alguma forma, ele me protegia. Mas, de novo, aquela velha questão:
O que farias se não tivesses medo?

Sei a resposta. Sei sempre a resposta.
Houvesse ousadia...

Relâmpagos

Banho-de-chuva. O último?

Final da tarde. Noite escura já. Trovoada ao longe avisa mais uma tempestade eminente. A chuva forte começa a cair. Forte como um ímpeto. Intensa como a vida. Uma intensidade boa, pois assim a desenhamos em nós ao recebê-la.
Nós no alpendre. Abrigadas de uma chuva que não respeitava abrigos e nos salpicava, em jeito de desafio. À nossa frente, o negro cerrado da noite rasgado por rectas de água a mergulhar na terra. O negro cerrado da noite interrompido por instantes em que os relâmpagos faziam dia.
“É a minha coisa preferida aqui!”, berra a Carmen, para que a sua voz falasse por cima do temporal. E estaríamos muito bem ali as duas nesta contemplação inquieta, não fosse a chuva gritar em nós a energia boa de quem se oferece inteiro. A chuva, tanta que só toda, pedia um acolhimento recíproco à sua dádiva. E já se sabe que nós não lhe conseguiríamos dizer que não.
Lá fomos então, primeiro a medo, que isto da chuva no escuro e dos relâmpagos a incandesceram a noite, exigia uma certa ousadia.
E à magia de receber essa água que cai do céu, junta-se a maravilha dos instantes de luz de cada relâmpago: ofuscavam os olhos e voltávamos ao escuro, à água; a roupa colada ao corpo. Os relâmpagos aproximam-se, e com eles trovões bem mais forte. Gritinhos de histeria, claro está, uma espécie de medo bom, e nós continuávamos ali. Frio, saltos para aquecer, olhos ao céu num clarão de mais um raio de luz. Vida a acontecer só porque sim.
Gritei mais do que nunca com a trovoada. Como se aquele entregar genuíno a esse momento de simples deleite limitasse a capacidade de conter os sobressaltos a cada novo ribombar.
Depois chegou a altura de caminhar no escuro de volta a casa. Entre um passo e outro, mais um relâmpago a iluminar o caminho. A seguir o banho de chuveiro, pobre imitação da aventura vivida. Depois a roupa seca no corpo e ainda o contentamento emancipado de razões.

O melhor da vida é mesmo fazer coisas sem sentido só porque as sentimos. Caminhar para debaixo da chuva nesse impulso infantil de querer brincar. Não esperar nada e receber como oferta essa alegria sem motivos, sem pudor, sem cerimónias. Aceitar absoluta esse efémero pedaço iluminado, e torná-lo perene pela plenitude com que foi acolhido.
E é neste relâmpago que queria demorar-me. Nesta magia de micro segundos em que a luz explode. Foram dois anos na Guiné-Bissau. Minha Guiné-Bissau. Serão mais dois meses. Depois o caminho segue. Olhos esbugalhados ao céu à procura de novos relâmpagos.

O último banho-de-chuva?

A vida são estes relâmpagos que rompem o escuro da noite debaixo da chuva. A vida não é esse escuro, mas os instantes de luz que continuam a brilhar nos nossos olhos mesmo depois de se apagarem. 
A Guiné continuará a brilhar em mim. Nos meus olhos, no meu coração, nas palavras, no caminho. A Guiné continuará a brilhar como um relâmpago que explode cá dentro. A Guiné continuará em mim. Sempre.

Faz-de-conta

Há um país onde se vive em permanente faz-de-conta
Faz de conta que estamos em Paz. 
Faz de conta que podes dizer o que quiseres. 
Faz de conta que vives em democracia. 
Faz de conta.

Não é um conto de fadas, não há princesas nem dragões. 
Há sítios encantados pelas gentes sagradas de um país que se quer inteiro a avançar, mas se vê travado e submisso. Não é um lugar do mundo da fantasia. É um chão de terra vermelha onde dançam as revoltas, onde se pisam as mágoas cansadas. É real. Mas faz de conta que não é.
É a brincar ao faz-de-conta que se vive nesse país. É a brincar que se segue pelos dias, é a brincar que se conversa nos djumbais das varandas, é a brincar que se esperam Eleições marcadas para breve. 
Ninguém diria que é uma brincadeira. Tal é a seriedade imposta neste faz-de-conta. Num jogo onde já se conhecem as regras de cor. 
Há quem não queira brincar (haverá quem queira??), mas neste jogo todos entram. Porque quando alguém se esquece do jogo, ou não quer brincar mais, e vai à sua vida normal, de verdades e preocupações, alguém vem lembrar que isto não é uma brincadeira de crianças. É um jogo de gente grande, ainda que muito pequenina. E é para levar a sério.

E sim, sim, está tudo bem. Mas estás a falar de quê? Talvez seja melhor falarmos de outra coisa...
É que eu que ainda não aprendi as regras, mas já vou brincando ao faz-de-conta. E às vezes até acredito nessa Paz fingida. Faz de conta.

Zona de conforto

Dizem que é quando saímos da nossa zona de conforto que a magia acontece. É preciso uma certa dose de ousadia e confiança. E de amor. Aquele que trazemos em nós e nós e nos faz relacionar com os outros, quem quer que eles sejam, com interesse, disponibilidade e ternura. E assim, a tal zona de conforto vai ficando maior. 
Será?
Às vezes fico com a sensação de que a nossa zona de conforto não aumenta, apenas se desloca. E voltar é, afinal, mais difícil do que foi partir.
Acho que quem cresce somos nós. Mas será sempre preciso voltar a ousar e a confiar, repetidamente. Isso é que fica mais fácil. É uma espécie de treino de despojamento, em que nunca nos tornamos atletas profissionais, mas não desistimos de praticar.
Não é, portanto, a zona de conforto que fica maior. Somos nós que deixamos de nos contentar com o conforto em si. E vivemos de ousadia em ousadia. Sempre em desconfortos que nos dão vida. Sempre em direcção a horizontes que projectamos num qualquer infinito sonhado.
O assustador torna-se não ousar. Voltar. Levar tudo contigo, depois de teres deixado tudo de ti. Esse todo que deixas e que levas. Preparar a bagagem com cuidado, sem deixar faltar nada. Quando voltamos de viagem, as malas vêm sempre mais descuidadas do que foram na partida.
Mas para voltar inteiro, é preciso sentir que se está a partir. Só quando partimos nos entregamos, em plenitude, às acções e às pessoas.
Se queres voltar, fá-lo como quem está a partir.