Banho-de-chuva. O último?
Final da tarde. Noite escura já. Trovoada ao longe
avisa mais uma tempestade eminente. A chuva forte começa a cair. Forte como
um ímpeto. Intensa como a vida. Uma intensidade boa, pois assim a desenhamos em
nós ao recebê-la.
Nós no alpendre. Abrigadas de uma chuva que não
respeitava abrigos e nos salpicava, em jeito de desafio. À nossa frente, o
negro cerrado da noite rasgado por rectas de água a mergulhar na terra. O negro
cerrado da noite interrompido por instantes em que os relâmpagos faziam dia.
“É a minha coisa preferida aqui!”, berra a Carmen,
para que a sua voz falasse por cima do temporal. E estaríamos muito bem ali as
duas nesta contemplação inquieta, não fosse a chuva gritar em nós a energia boa
de quem se oferece inteiro. A chuva, tanta que só toda, pedia um acolhimento
recíproco à sua dádiva. E já se sabe que nós não lhe conseguiríamos dizer que não.
Lá fomos então, primeiro a medo, que isto da chuva
no escuro e dos relâmpagos a incandesceram a noite, exigia uma certa ousadia.
E à magia de receber essa água que cai do céu,
junta-se a maravilha dos instantes de luz de cada relâmpago: ofuscavam os olhos
e voltávamos ao escuro, à água; a roupa colada ao corpo. Os relâmpagos
aproximam-se, e com eles trovões bem mais forte. Gritinhos de histeria, claro
está, uma espécie de medo bom, e nós continuávamos ali. Frio, saltos para
aquecer, olhos ao céu num clarão de mais um raio de luz. Vida a acontecer só
porque sim.
Gritei mais do que nunca com a trovoada. Como se aquele entregar genuíno a esse momento de simples deleite limitasse a capacidade de conter os sobressaltos a cada novo ribombar.
Depois chegou a altura de caminhar no escuro de
volta a casa. Entre um passo e outro, mais um relâmpago a iluminar o caminho. A
seguir o banho de chuveiro, pobre imitação da aventura vivida. Depois a roupa
seca no corpo e ainda o contentamento emancipado de razões.
O melhor da vida é mesmo fazer coisas sem sentido
só porque as sentimos. Caminhar para debaixo da chuva nesse impulso infantil de
querer brincar. Não esperar nada e receber como oferta essa alegria sem motivos,
sem pudor, sem cerimónias. Aceitar absoluta esse efémero pedaço iluminado, e torná-lo perene pela plenitude com que foi acolhido.
E é neste relâmpago que queria demorar-me. Nesta
magia de micro segundos em que a luz explode. Foram dois anos na Guiné-Bissau.
Minha Guiné-Bissau. Serão mais dois meses. Depois o caminho segue. Olhos
esbugalhados ao céu à procura de novos relâmpagos.
O último banho-de-chuva?
A vida são estes relâmpagos que rompem o escuro da
noite debaixo da chuva. A vida não é esse escuro, mas os instantes de luz que
continuam a brilhar nos nossos olhos mesmo depois de se apagarem.
A Guiné
continuará a brilhar em mim. Nos meus olhos, no meu coração, nas palavras, no
caminho. A Guiné continuará a brilhar como um relâmpago que explode cá dentro. A Guiné continuará em mim. Sempre.
Sem comentários:
Enviar um comentário