A bola do Malaquias

Ontem o Malaquias trouxe da escola as notas do 2º Período. Eram notas muito boas, bem melhores que as do primeiro trimestre. Ficámos contentes e elogiamos o seu esforço, o seu trabalho. Envergonhado, olhos atentos, silêncio, como quem espera todas as coisas boas que tínhamos ainda a dizer sobre ele e o seu bom desempenho escolar.
Chamamos a mãe para analisar com ela o caderno e as notas, para senti-la orgulhosa do filho "maluco", como continua a dizer, apesar de longas conversas acerca desse significado. Não que isso a faça gostar menos dele. A questão não é essa. É que quando a vida é cada dia, cada necessidade, cada esforço, falta espaço e tempo para pensar as sensibilidades de cada um. E quem não fala - ou fala pouco - é maluco; e isso é um facto, e não um insulto.
Aos poucos a Helena vai percebendo e, alegria ainda maior, o Malaquias vai falando cada vez mais.
 
Ontem a Carmen perguntou-lhe a idade:
- Cinco!, respondeu firme.
Pois ele já tinha seis quando o conheci e estava convencida que o aniversário do Malaquias era em Junho. Confirmei com a mãe:
- Helena, em Junho o Malaquias faz sete anos, não é?
- Não, Momi, ele já fez sete anos em Março, dia 6.
O Malaquias ficou admirado, mas continuou em silêncio. Expliquei-lhe:
- Vês, Malaquias, tens sete anos. Agora não esqueces mais. Quando for Março outra vez, fazes oito. Mas ainda falta muito. 
 
Aniversário esquecido e bom aproveitamento na escola mereciam ser celebrados. Pensamos qual seria a prenda ideal para um menino guineense de sete anos, e lá saímos à hora de almoço pelas ruas de Bafatá à procura de uma bola de futebol. Foi só na feira que encontramos e seguimos para casa, a bola a queimar-me nas mãos de entusiasmo... Vinha eu a imaginar como ele iria ficar feliz, e já preparada para que essa felicidade fosse apenas diagnosticada nos sinais mais subtis.
Àquela hora o Malaquias estaria certamente a dormir profundamente como em todas as tardes a seguir ao almoço enquanto espera pela mãe, porque mesmo com sete anos, o dia e o trabalho começaram bem cedo.
Já sabia que não ia conseguir esperar que ele despertasse por si e lá o tentamos acordar, primeiro sem sucesso, depois uns olhos que se abriram ao som da palavra "bola", que essa é igual em português e em crioulo. Meio confuso, perdido de sono, olhava para a bola e para nós como se ainda estivesse a tentar perceber. Voltou a adormecer, mas os olhos, intermitentes, iam confirmando a presença de uma bola nova ali tão perto.
Deixei-o então descansar, até que comecei a ouvir o barulho do plástico em mãos que se certificavam que aquilo era real.
Quando tentei tirar fotografia, já o sono o tinha vencido outra vez...




Ao final da tarde, por curiosidade, perguntei à Helena se costumavam celebrar os aniversários e de que forma. 
- Nada!, respondeu-me.
Conversamos um pouco sobre isso: não existe sequer um abraço, um "Feliz aniversário!", "Parabéns!". Nem tão pouco é comunicado à criança que, a partir daquele dia, a idade dela é diferente...
Depois acrescentou:
- Houve só uma vez que celebramos o aniversário do Malaquias: comprei bolachas, sumo e pilhas para o rádio.
 
Fiquei a pensar que talvez tenha sido quando fez cinco anos, a idade que ele acreditava manter.
 
Ontem, quando regressou com a mãe a casa, ele e os irmãos não tiveram que ir para a campanha de caju, como acontece nesta época. A bola exigia ser estreada.
 
Hoje não o vi. Assim que a escola acabou, não ficou à espera da mãe. Seguiu para casa e depois para o caju, que não se é criança todos os dias.

6 comentários:

  1. Mais um texto que se lê com um sorriso e com vontade de saber mais e mais acerca de crianças como o Malaquias.
    Parabéns por mais um cenário em que impera toda a simplicidade que já perdemos...
    Beijo grande
    mami

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  2. Ai mana vi essa foto e lembrei-me dos sonos do nosso príncipe, do nosso menino, de que era bom vê-lo dormir, velar pelo sono dele ... o nosso João, cada vez mais crescido, mas sempre nosso :-)!

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    1. Agora é vê-lo enganar o sono :p
      Somos tão babadas por essa criatura, muito ridiculinhas :)
      Abraço enorme, mana! Saudades vossas... muiiiiitas!!!

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    2. Que bom ser simples e humilde.
      É tão bom olhar para trás e ver o "Glodi".
      Que feliz eu sou por vos ter em mim!
      O que mais desejo é ver a vossa felicidade.
      Parabéns,
      Papi

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    3. Ai o Glodi...! A vida do Malaquias é um mar de rosas comparada com o que o Glodi passou. Engraçada esta comparação que nos faz por as coisas em perspectiva...
      Saudades do Glodi que se perdeu no tempo, feliz pelo nosso João, por todos os obstáculos ultrapassados e pela nossa família Bennetton :)
      xi-coração, Papi! Que possamos ser felizes juntos, sempre.

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