Longe de utopias

Ele é piloto. Está a trabalhar para um hotel, numa ilha, num país. Transporta clientes entre a ilha e a capital. Transporta também as suas malas. Uma vez transportou não-sei-quantos quilos de ouro. O inglês "gold" e o barulho de um bar nessa capital fizeram-nos ouvir "droug". E afinal não ouvimos assim tão mal. Desconfia que, sem saber, transporte droga. Só não tem a certeza, porque assim é mais fácil dormir à noite. E porque, na verdade, está só a fazer o seu trabalho, cuja responsabilidade se encerra em pilotar um avião. 

É assim que o mundo segue. É assim que as pessoas dormem à noite. É assim que nada muda. É assim que se perpetua a pobreza e a estupidez num país que tem as melhores pessoas do mundo e os piores dirigentes, ricos por fazerem parte do mais lucrativo e destrutivo negócio do mundo.

E ele é um rapaz simpático, atraente, algo angustiado por essa "dúvida". Mas está a fazer o seu trabalho. E atira para um canto essa questão do eventual transporte de drogas, e dessa vez que transportou armas e só percebeu depois, porque em Maio vai embora, e até lá há sol e praia e piscina e vinte filmes por semana para não sobrar tempo para a consciência pesar. E porque pode sempre distrair-se com as malas dos clientes, que são apenas isso, bagagem de turistas.

No fim da noite, já perto da manhã, volto a lembrar esse rapaz que só pilota um avião. Se não fosse ele, seria outro. Mas não consigo deixar de julgá-lo por não fugir e ir pilotar outros aviões. Porque conheço as caras, os nomes, as vozes, de quem luta diariamente para sobreviver num país de gente cansada de aviões entre as ilhas e a capital, raiz da eterna instabilidade; segredo mal guardado, que ninguém é ignorante deste assunto dito apenas nas entrelinhas.
E porque me irrita a minha pequenez invisível, a minha incapacidade. Porque me dói não ser nem um pouquinho melhor do que esse jovem piloto. Porque depois desta conversa fui dançar e rir. E porque agora não consigo dormir. Porque quero outro mundo, mas não sei o caminho. Porque quero outras acções, e o meus gestos ficam-se nestes dedos sobre o teclado. Porque quero utopias e me fico pelo banal. Porque explode em mim um sonho, mas não consigo sequer adormecer para sonhá-lo. Acordam-me as pessoas. As que conheço e as que nunca vi. 
E queria só ser um pouquinho mais inconsequente, menos resguardada, e sair por aí a gritar. Mas sou só mais uma aqui no meio... Que contesta, que se revolta, que vence o cansaço a pensar neste assunto, mas acaba por se deixar vencer pelo sono.

2 comentários:

  1. Mana linda compreendo a tua inquietação, não esqueças porém que tu já fazes caminho por "outro mundo", que tu te impeles para a ação muito para lá do que a maioria das pessoas é capaz de fazer, que já transformas em real o que poderia ser uma utopia para muitas das pessoas que se cruzam contigo! Tu és a diferença! Não exijas de ti mais do que a tua "utopia" permite ... Amo-te e estamos juntas!

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    1. Sou nos meus pequenos gestos, como tu és os teus. Mas às vezes fico a pensar em como é preciso tão mais... O mundo precisa mesmo de mais...
      Abraço enorme, mana*

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