Falar mantenhas

"Falar mantenhas" é uma expressão do crioulo da Guiné-Bissau que quer dizer algo como "cumprimentar" ou "mandar cumprimentos", dependendo do contexto em que é empregue.

Hoje, depois duma curta visita ali ao nosso alpendre de um amigo meu que trabalha nos escritórios da Cúria, a Helena - em jeito de desabafo indignado - disse:
- Es i ka ta fala mantenha!
(Este nunca cumprimenta!)

E continuou, a explicar que um dia destes estava a limpar o nosso escritório e ele entrou e perguntou: "Nundé Momi?"
(Onde está a Momi?)
E ela indignadíssima, a dizer que só tinha perguntado por mim e "calado a boca". Porque não é assim que se faz! Ele deveria entrar, dizer bom-dia, ou boa-tarde, e, depois sim, explicar que estava à procura da Momi.
 
De facto, as "mantenhas" iniciam qualquer tipo de contacto por aqui. Tudo começa por esse cumprimento e, mesmo que seja só de passagem, prolonga-se quase sempre num "Kuma ku mansi? Kuma di corpo?" (Como amanheceste? Como te sentes?)
E sim, as pessoas respondem, perguntam-te de volta e esperam o que tens a dizer. Por vezes, pode até nem haver um sorriso a acompanhar. O que nunca falta é o interesse e o cuidado.
 
Concordei com ela, mas diverti-me imenso com a sua indignação. Não pela piada em si. Mas pela ternura escondida nos gestos e no trato que sempre me surpreende nos guineenses.
Pouco antes, alguém se tinha aproximado do alpendre para perguntar onde era a Rádio Sol Mansi. Antes, porém, disse boa-tarde. E a Helena respondeu a este "boa-tarde" com tal indiferença, que nunca me passaria pela cabeça que a incomodasse tanto se a pergunta não tivesse sido antecedida pelo cumprimento.

É como, às vezes, quando a vejo falar com o Malaquias, seu filho de 7 anos. Parece sempre falar com frieza e até alguma distância. Isto para mim, que estou habituada à imagem das crianças a serem tratadas com todo o carinho e em cada frase que lhe é dirigida haver sempre a sensação de que naquelas palavras transborda uma espécie de doçura falada, fazia-me alguma confusão. Mas tenho vindo a perceber como há uma preocupação constante, um interesse e um cuidado permanente. E isto acontece de forma prática e objectiva.
Eu é que gosto tanto de pormenores, de miminhos e ternuras, que nem sempre consigo ver para além da dureza dos dias e da vida. Mas um olhar mais atento faz descobrir esse amor que não se sabe mas é corpo nessa entrega quase automática, que não é pensada, num cuidar tão natural e genuíno, que se despe de quaisquer acessórios que o pudessem embelezar.
E não deixo de ficar absolutamente enternecida com esta forma de amar. Invisível de tão evidente.
 
Como no pequeno Malaquias, que no exacto momento em que escrevo, dorme numa cadeira ao meu lado.
Porque gosta de mim, mas não sabe transmiti-lo. Porque quer estar comigo, mas não sabe como dizê-lo. Então vem até ao escritório e inventa motivos. Ou espera que eu os invente.
- Queres fazer um desenho?
Acena que sim com a cabeça e senta-se ao meu lado. Termina e fica a olhar para mim. Elogio o desenho e pergunto se quer outra folha. Diz que não. Pega na cadeira e senta-se mais perto de mim. E fica só a ver-me trabalhar. Olha para o teclado, para o monitor, a tentar perceber o que raio estarei eu a fazer. Os olhos começam a ficar pequeninos de sono.
- Malaquias, não queres ir descansar?
Responde que não, convicto. Os olhos cada vez mais pequenos, o corpo a amolecer. Volto a perguntar-lhe e ele endireita-se na cadeira, tenta arregalar os olhos.
Sei que o seu dia começou cedo e que a esta hora costuma estar caído em sono profundo algures na nossa casa, enquanto espera a mãe terminar o trabalho. Mas reconheço, nesta subtileza infantil, o esforço de viver este dia assim. As aulas terminaram hoje. Pelo que, a partir de agora, ficará em casa, com os irmãos. E eu vou de férias daqui a 3 semanas. Então o pequeno Malaquias continua a debater-se com o sono. E eu não insisto. Finjo que não percebo e deixo-o adormecer tranquilo. Porque agora os meus olhos já sabem descobrir os esconderijos da ternura.




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